“No passado, não se combatia a velhice. Vivia-se a velhice ‘como Deus quisesse ou mandasse’. Ela chegava mansamente. Velhos não assustavam os jovens”. A passagem está presente no livro “Uma história da velhice no Brasil”, da escritora Mary Del Priore, que será lançado durante a 5ª Feira Literária Internacional de Tiradentes (Fliti), realizada de 9 a 13 de abril, na cidade histórica do Campo das Vertentes.

Na obra, a historiadora carioca mergulha nas diferentes formas de encarar o envelhecimento da população, do século XVI ao XXI, com base em testemunhos encontrados em documentos históricos, correspondências e na literatura. "Esse livro nasceu de uma mãe centenária e de uma dor no joelho. Mas eu acho que são temas da sociedade que interessam. Num Brasil que está lendo pouca história e se interessa pouco pelo seu passado é uma maneira de você atravessar a história do país pensando uma questão de extrema atualidade”, afirma Mary.

“O Brasil é um país jovem de cabeças brancas”, nas palavras da própria autora. Segundo o censo do IBGE, a população brasileira está mais envelhecida do que nunca. Em 2022, o número de brasileiros com mais de 65 anos cresceu 57,4% desde 2010, representando 22,2 milhões de pessoas nessa faixa etária, o equivalente a 10,9% do total.

Urbanização excludente

E as diferentes formas de ser velho, de acordo com o desenvolvimento do país, vão dando contorno às páginas do livro desde os tempos da Independência até os dias de hoje. Mary destaca que a urbanização teve - e tem - um efeito enorme na vida dos idosos em diferentes eras.

“Primeiro, porque a urbanização acelerou a vida das pessoas, acelerou o mundo do trabalho, e o velho vai perdendo o seu lugar, o seu espaço na sociedade. Essa urbanização traz revoluções tecnológicas que o velho custa a se habituar. No passado, por exemplo, era o bonde no qual ele tinha que subir com dificuldade, ou era o rádio que ele não ouvia direito, e hoje é o computador, o grande desafio para o velho, é a inteligência artificial. Então a tecnologia sempre tem um impacto muito grande. A transformação das famílias também, que vai fazer com que esse poder que estava centrado no mais velho, no mais respeitado, vá se diluindo”, analisa.

Apesar do envelhecimento ser para todos que estão vivos, a pesquisadora mostra que as diferenças sociais têm grande influência no desenrolar desse processo. “Sabemos: houve e há as mais diversas velhices, sobretudo num país desigual como o nosso, o velho rico vai viver mais e melhor que o pobre; onde combates cotidianos nos obrigam a constatar que o mundo não é branco ou preto e que a realidade das opressões e carências é complexa”, anotou.  

A historiadora critica o “velho influencer” que busca imprimir um novo ritmo e status do que é estar acima dos 60 anos, porém de uma forma inalcançável para a maioria das pessoas. “O século XXI está tentando mudar esse velho e transformou a velhice numa alegria maravilhosa. Ele tem dentes de titânio, ele toma Viagra, ele vai fazer surf na Austrália, malha e ainda faz crossfit. É como se as dores não aparecessem, é como se a a memória não enfraquecesse, porque a velhice é inevitável. Ela faz parte da vida do ser humano. Mas, hoje, nós temos aí essa febre um pouco ridícula que procura transformar o velho centenário em um pré-adolescente”, reclama Mary.

Ode aos antepassados

Segundo a autora, uma forma de avançar na idade com mais aceitação e de forma mais respeitosa é ler sobre nossos antepassados. As lições sinceras funcionam como modelos capazes de iluminarem o mundo atual, no qual, segundo ela, faltam bons exemplos. Mary conta que os ancestrais, ou seja, os velhos de antigamente, foram pessoas que passaram por dificuldades com as quais nem sonhamos, “experimentaram perdas que hoje curamos com ansiolíticos”, sobreviveram a carências diversas. O sofrimento era vivido com altruísmo sem se queixas e coitadismos públicos.

“Diante das dificuldades que eles tiveram que enfrentar, a meu ver, eles fazem um contraste belíssimo com esse velho de hoje que corre atrás do tempo. Eles aceitavam o tempo passar com serenidade, com dignidade, procurando sempre ter uma função dentro de casa - isso a gente vê desde o século XVI até os anos 60. Eles começavam a morrer quando não eram mais úteis. Então, essa busca de contribuir é o belíssimo exemplo que essa gente nos dá, diferentemente de hoje, quando nós temos milhares de picaretas influencers querendo convencer o velho de que ele tem que viver pra ele mesmo, que ele tem que rejuvenescer, que a juventude é a fonte de tudo. Não é. A fonte de tudo é a serenidade que a gente vê nesses depoimentos”, explica.

A historiadora finaliza seu livro dizendo que a única certeza da vida é envelhecer, renunciar à eternidade e se integrar ao sentimento de finitude. Depois de toda essa pesquisa, ela recomenda a quem tem medo da velhice fugir de livros de autoajuda, de remédios milagrosos e de conselho dos influencers.

Questionada se está pronta para envelhecer, a autora é taxativa: “Eu, com dor no joelho, lógico! A gente vai, é inevitável! E a gente aprende muito e vê que podemos ser ainda muito operacionais justamente sendo úteis, pensando no coletivo e não no individual. Pensar no nós e não no eu. Então, sim, tô pronta e muito segura!”, pontua.

Sobre a autora

Mary Del Priore é uma referência para os estudos históricos acerca do Brasil. Com pós-doutorado na Ecole Hautes Etudes Sciences Sociales, de Paris, França, já escreveu mais de 50 livros, multipremiados. Sócia honorária do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), é autora dos volumes de História da Gente Brasileira e de dezenas de obras que esclarecem fatos e personagens do Brasil, com destaque para a participação feminina na formação do Estado e da Nação. Em 2022, foi eleita membro da Academia Paulista de Letras.