Desde os primórdios da narrativa humana, figuras antagonistas exercem um estranho fascínio sobre o público. Na mitologia grega, a temida Medusa, com seus cabelos de serpentes e o poder de transformar quem a olhasse em pedra; na literatura clássica, o ambicioso Macbeth de Shakespeare, que evolui de herói a tirano; no cinema moderno, o canibal e sofisticado Hannibal Lecter de “O Silêncio dos Inocentes”, que, além dos filmes, ganhou uma série… Enfim, mesmo que em diferentes épocas e formatos, todos eles têm algo em comum: apesar de suas ações moralmente condenáveis, conquistam a admiração e até a simpatia do público. 

Um fenômeno que se manifesta com especial intensidade na cultura pop contemporânea, onde vilões como o Coringa, seja nos quadrinhos ou no cinema, ou a complexa Malévola, da Disney, que ganhou até mesmo um filme próprio, superam em popularidade muitos de seus equivalentes heroicos.

No Brasil, a tendência é observada também nas telenovelas. Personagens perversos, capazes das maiores atrocidades, rapidamente caíram no gosto popular – e se, antes, contavam com uma torcida mais tímida, menos explícita, hoje são geradores de memes, ganham fanpages e mexem com os humores nas redes sociais.

Curiosamente, para ficar em um exemplo mais recente, que deixou até Manuela Dias, autora por trás das refilmagens de “Vale Tudo”, espantada, mesmo atitudes moralmente reprováveis, como a decisão de Maria de Fátima de vender a casa da própria mãe para “vencer na vida”, encontram defensores nas redes sociais. Para ficar na mesma trama, o corruptor Marco Aurélio e a insensível Odete Roitman também já alcançaram o status de malvados favoritos entre fãs do folhetim.

A rapidez e intensidade como esses personagens caem no gosto popular, aliás, espantou a atriz Eliane Giardini, que, em 2023, interpretou sua primeira vilã: a Agatha, da novela “Terra e Paixão”. Em entrevista ao programa Sem Censura, da TV Brasil, ela comentou ter ficado assustada com a repercussão e apoio recebido. “Pensei: ‘Porque uma vilã desperta tanta empatia nas pessoas?’”, conta.

A atriz menciona, então, ter lido um texto de Rodrigo Viana, um analista de dados da Rede Globo, que lhe pareceu fazer sentido. Na publicação, o autor argumentava que a ficção nos permitia ver, nos outros, os monstros que nós mesmos somos. “Eu comecei a entender que, de repente, é até terapêutico”, pontua, imaginando que o espectador pode exercer a vilania que reprime para viver no coletivo enquanto assiste àquele personagem ficcional.

Identificação e sublimação

Na avaliação da psicanalista Cinthia Demaria, a análise faz sentido. A estudiosa do comportamento humano indica que uma série de fatores, inclusive psicológicos, ajudam a entender essa estranha atração por figuras que, em tese, deveriam causar repulsa. Para começar, lembra que a arte, em suas diversas manifestações, cumpre uma função catártica importante na sociedade, nos permitindo, como sugere Eliane Giardini, acessar e lidar com nossas próprias sombras de maneira segura e socialmente aceitável. Esse processo remete ao conceito freudiano de sublimação, onde certas pulsões – como a agressividade – são redirecionadas. 

“É como se fosse possível canalizar desejos socialmente impraticáveis para uma tela, uma cena, uma música… É uma forma de lidar com pulsões e desejos, transformando-os em algo construtivo e positivo”, avalia. Cinthia prossegue mencionado que a energia pulsional, que seria direcionada para um objetivo sexual, é redirecionada para outras atividades – “o que não significa que esses desejos vão ser reprimidos, porque a condensação na arte não elimina o desejo, mas apenas o expressa de forma indireta e aceitável”, explica. “Por isso a identificação com os vilões poderia ter um pouco dessa função, a meu ver, de condensar e sublimar aquilo que diz sobre um desejo do sujeito, representado por um artista”, completa.

Na prática, portanto, quando torcemos pelo vilão ou nos identificamos com suas motivações, estamos experimentando, em um ambiente controlado, emoções que seriam problemáticas de serem externalizadas por nós mesmos. Dessa maneira, o vilão acaba funcionando como um recipiente para aspectos da personalidade que normalmente precisamos reprimir. Daí que personagens como Walter White, da série “Breaking Bad”, que evolui de professor a narcotraficante, ou a calculista Claire Underwood, de “House of Cards”, despertem tanta identificação: eles personificam fantasias de transgressão, poder e controle que não podem ser realizadas no nosso cotidiano.

Mas, claro, a equação não é tão simples. Afinal, a arte, dentre tantas outras funções, ao produzir identificações, nos aproxima dos vilões, mas também dos mocinhos. “Então, quem já foi vítima de situações semelhantes ao qual o vilão da novela age contra o mocinho, por exemplo, provoca uma identificação reversa, como vemos às vezes as pessoas até agredirem os atores nas ruas ou nas redes sociais”, comenta.

Marcadores sociais

Além da dimensão psicológica, Cinthia Demaria lembra que os vilões cumprem uma função social. “Eles servem como demarcadores culturais do que é considerado aceitável em determinada época”, observa, acrescentando que cada geração, inserida em um período histórico específico, terá seus vilões característicos, que refletem os medos e ansiedades de seu tempo. Nos anos 1980, por exemplo, era comum que os vilões de filmes de ação ou dos quadrinhos representassem ameaças geopolíticas, ecoando as tensões da Guerra Fria. 

Esse aspecto fica ainda mais evidente quando comparamos representações de vilania em diferentes contextos sociais, políticos e culturais. Daí que o que era considerado um comportamento vilanesco no século XIX pode destoar e muito do que entendemos como vilania na atualidade. Não é à toa que vilões de obras clássicas, como o Conde Drácula ou Frankenstein, sejam frequentemente reinterpretados nas adaptações contemporâneas – muitas das vezes, perdendo as características físicas monstruosas e ganhando outra roupagem.

E as redes sociais adicionaram uma nova camada a essa dinâmica. Plataformas como Instagram, X e TikTok podem, inclusive, transformar a discussão sobre personagens em campos de batalha ideológicos. Não raro, esses personagens perdem traços de sua complexidade, sendo reduzidos a determinado discurso. “O discurso das redes é um discurso por si só, que fala de uma identificação um pouco mais radical, do tudo ou nada, em que não cabe nuance”, aponta. Diferentemente da arte, essa dinâmica online não promove a sublimação.

“Na verdade, por essa combinação de sensação de liberdade, por falar atrás de uma tela, e sensação de ter que opinar sobre tudo, o que temos é um ponto de identificação, mas que não sublima esse desejo e, em vez de freá-lo, tende a inflá-lo”, sinaliza. O fenômeno favorece que ocorra uma “super identificação” com os personagens da cultura pop, levando espectadores a defendê-los como se defendessem a si.

Trajetória

Cinthia Demaria ainda ressalta que o investimento em um alto grau de complexidade psicológica dos vilões também precisa ser levado em conta ao analisar o porquê desses personagens serem tão amados. Para ela, essa humanização cria uma ponte emocional com o público, nos ajudando a entender as circunstâncias que levaram um personagem à vilania e nos confrontando com perguntas desconfortáveis: será que, em condições similares, não poderíamos tomar caminhos semelhantes? 

Para ilustrar o potencial dessa representação – que apela para uma ambiguidade moral e uma história que, pode não justificar, mas nos ajuda a entender o comportamento do personagem –, a psicanalista cita o filme “Coringa”, de 2019, em que Joaquim Phoenix vive Arthur Fleck, um homem comum esmagado pelo sistema que, pouco a pouco, se transforma em um ícone do caos. Uma história que ressoou entre seus espectadores ao redor do mundo e alcançou mais de US$ 1 bilhão nas bilheterias globais. 

Por esse viés, não seria exagero dizer que a verdadeira medida de um bom vilão não está em quantas pessoas ele consegue assustar, mas em quantas ele consegue fazer questionar se, em nosso íntimo, somos tão diferentes deles.