Walter Salles, ganhador do Oscar de melhor produção internacional neste ano, por “Ainda Estou Aqui”, quem escreveu a carta de recomendação para Marianna Brennand conseguir se matricular no prestigiado curso de cinema da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, em 1997. Pouco menos de três décadas depois, o apoio do padrinho foi fundamental para a realização de “Manas”, primeiro longa-metragem ficcional da cineasta pernambucana, já em cartaz nos cinemas.

Com uma temática difícil, ao investigar os relatos de abusos sexuais de menores de idade pelos pais, no Estado do Pará, o filme também chamou a atenção dos irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, dos laureados “Rosetta” (1999) e “A Criança” (2005). Impulsionado por nomes tão importantes, “Manas” abriu caminho internacional, ganhando mais de 20 prêmios desde que estreou nas telas do Festival de Veneza, quando faturou o Director’s Award, dentro da mostra Giornate degli Autori.

“Eles acreditaram no ‘Manas’ desde o início. Não é um projeto fácil de fazer. Não é um projeto fácil de financiar e distribuir. Ter os irmãos Dardenne e o Walter Salles juntos no projeto desde o início, colaborando artisticamente, é muito importante”, observa Marianna, em conversa por videoconferência de Cannes, na França, onde vai receber, neste domingo, no jantar oficial do Festival de Cannes, o Women in Motion Emerging Talent Award, dedicado a diretoras estreantes em longas.

“Sou a primeira brasileira a receber esse prêmio”, comemora. “Fui escolhida pela diretora que ganhou no ano anterior (a malaia Amanda Nell Eu). É um prêmio que, todos os anos, reconhece uma mulher importante pelo conjunto da carreira. Esse ano vai ser a (atriz) Nicole Kidman, que receberá o prêmio principal, enquanto eu receberei o prêmio de diretora revelação. Está sendo muito especial”, sublinha Marianna, que também ganhará ¤ 50 mil para o desenvolvimento do próximo projeto. 

Sobrinha-neta do artista plástico Francisco Brennand, protagonista de seu primeiro longa (o documentário “Francisco Brennand”, lançado em 2017), Marianna revela que o contato com os irmãos Dardenne aconteceu durante mercado de negócios realizado pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2018. “A gente apresentou o projeto para Delphine Tomson, produtora deles, que imediatamente se apaixonou por ele e mostrou para o Jean-Pierre e para o Luc”, detalha.

“Eles também se envolveram de imediato e começamos uma colaboração que foi muito, muito rica no processo de escritura do roteiro e na montagem. Já o Walter foi uma das primeiras pessoas a saber que eu estava fazendo esse filme. Um dos primeiros tratamentos do roteiro já compartilhei com ele e com a Maria Carlota, que é a produtora do Walter e da VideoFilmes”, comenta a realizadora, que, a princípio, esperava fazer um documentário sobre a situação das meninas paraenses. 

“Manas” nasceu, segundo ela, do desejo de dar voz a meninas e mulheres silenciadas que sofrem violências. “Quando eu soube do que acontecia na Ilha do Marajó, dos casos de abuso e exploração sexual com crianças e mulheres, eu fiquei muito tocada, muito mexida e, como documentarista, meu primeiro ímpeto foi fazer um documentário de denúncia. Queria lançar luz sobre o que estava acontecendo ali, sobre algo que nunca tinha ouvido falar, e isso me chocou ainda mais”, afirma. 

Ela lembra que, quando iniciou a pesquisa, havia pouco material sobre o assunto. “Quem me abriu as portas do Marajó e que me recebeu lá foi a Irmã Maria Henriqueta, uma grande heroína brasileira, que atua há 40 anos na região amazônica, combatendo e enfrentando a violência contra meninas e mulheres. E ela me foi apresentada pela Fafá de Belém, que me contou tudo, há mais de dez anos, quando eu estava lançando o documentário do Brennand em São Paulo. Somos amigas há muitos anos”.

Naquela época, a cantora paraense tinha ido ao rio Tajapuru, em Marajó, e entrado em contato com aquela realidade. “Eu sou uma mulher, e o meu desejo imediato foi quebrar com esses silêncios e tentar ajudar de alguma maneira, uma situação que, infelizmente, continua acontecendo até hoje. Depois de dez anos, com o filme sendo lançado, a exploração sexual ainda acontece nas balsas que atravessam o rio. O abuso intrafamiliar ainda acontece, não só no Marajó, mas no Brasil e no mundo todo”, lamenta. 

Respeito aos corpos

Ator brasiliense-mineiro Rômulo Braga interpreta o pai abusador da garota Marcielle (Jamilli Correa), uma missão que a própria diretora admite não ser nada fácil. “O Rômulo fez um retrato desse homem que violenta sua filha de 13 anos de uma maneira muito, muito complexa. E com muitas nuances e camadas, que era exatamente o que eu desejava. Eu queria fugir do estereótipo do abusador, do monstro, porque não é o monstro que violenta a criança, e sim a pessoa que está próxima, em quem você confia”.

Para esse trabalho, frisa Marianna, o ator precisou passar a ideia de um pai delicado e amoroso ao mesmo tempo que exibia o lado abusador. “E o Rômulo foi a primeira pessoa que a gente pensou (para o personagem)”, entusiasma-se a realizadora, que também escalou a cearense Fátima Macedo para o papel da mãe, “uma mulher silenciada, símbolo de um ciclo perverso de abuso”, e Dira Paes, como uma delegada.

“A Fátima é uma atriz tão potente, que consegue segurar tudo ali naquele olhar, na impossibilidade da fala e de colocar para fora seus sentimentos e a sua verdade. A Dira está no projeto desde o início, desde o primeiro edital de desenvolvimento de roteiro que a gente ganhou. Ela falou: ‘Estou contigo, mana. Essa história precisa ser contada, pode contar comigo’. E a personagem dela, inspirada na Irmã Maria Henriqueta e no delegado Rodrigo Amorim, foi escrita para ela”, registra.

Marianna Brennand também não poupa elogios a Jamilli, definida como uma força da natureza. “Foi uma descoberta. Ela era uma menina de Belém que nunca tinha pisado num palco ou feito um filme. Estava com 13 anos na época, a mesma idade da personagem. É impressionante que, no primeiro trabalho dela, tenha conseguido essa potência. Ela tem um rosto cinematográfico, um silêncio preenchido”, comenta.

"O filme inteiro tem um valor sensorial, sendo muito mais de sentir do que de ver, né? Ele lhe transporta para o coração e para a alma dessa menina. Você está ali do lado, colado nela, na pele dela, respirando com ela. E a gente sabia que a gente teria um desafio muito grande de encontrar uma menina que fosse capaz de interpretar cenas tão desafiadoras,sentimentos tão profundos. Sou muito orgulhosa do trabalho da Jamilli e de todo o elenco", analisa.

A diretora salienta que um diferencial em “Manas” é a manutenção de equilíbrio entre o documental e a ficção, o que torna a narrativa ainda mais potente. Ela também ressalta o não uso da violência, o que representa uma atitude política, em sua avaliação. “É um posicionamento importante, como mulher, fazer um filme que respeita nossos corpos, que não erotiza o corpo de uma criança de 13 anos. Era muito importante para mim que víssemos uma menina, a infância, a inocência, e sentíssemos o quão inaceitável é o acontece com ela”.