"Nimuendajú” é a primeira produção mineira a participar da competição do Festival de Annecy, o mais importante dedicado aos filmes de animação, com início em 8 de junho, na cidade francesa. Além de conquistar essa importante vitrine, que ajudará na circulação internacional, a obra de Tania Anaya estabelece outro marco: é o primeiro longa-metragem do Estado no formato assinado por uma mulher.
“De forma geral, no audiovisual, há mais homens do que mulheres em alguns setores, o que não é diferente na animação. É por isso que, no nosso caso, os postos chaves são ocupados por mulheres”, assinala a cineasta, que se formou na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, hoje um dos principais celeiros de animadores do país.
Nos últimos anos, a produção mineira de animação vem ganhando força, resultando no lançamento, em 2023, do primeiro longa – “Chef Jack: O Cozinheiro Aventureiro”, de Guilherme Fiúza. “Nimuendajú” é o terceiro, antecedido por “Placa-Mãe”, de Igor Bastos, exibido em 2024 e o primeiro saído do interior de Minas (Divinópolis). A diferença para seus antecessores é que Anaya focou no público adulto.
“Eu sempre batalhei muito a animação para adulto, que é um nicho. Na questão de distribuição, a gente teve muito sorte, porque conseguimos a O2 Play para lançá-lo. Eles abraçaram o projeto, o que foi muito interessante”, aponta Tania, citando a distribuidora paulista criada pela produtora de Fernando Meirelles, que também pôs “Placa-Mãe” no mercado.
Se levar em conta o tempo de produção de “Nimuendajú”, que demorou 13 anos para ficar pronto, Anaya teria sido a responsável pelo primeiro longa mineiro. O que seria esperado e merecido, porque a diretora é uma das pioneiras no Estado, tendo participado da primeira turma do núcleo de cinema de animação criado na Escola de Belas Artes da UFMG, em 1988, fruto de um convênio com a Embrafilme.
“A gente começou em 2012 e, praticamente, me concentrei nele nesse tempo todo, embora tenha iniciado outros projetos. Foi mesmo um mergulho, até porque é complicado fazer um longa de animação. A gente passou por vários processos para poder encontrar a técnica adequada, além de termos parado duas vezes, por questão de orçamento”, explica Tania. O custo total fo de R$ 5 milhões.
O desenho conta a história de Curt Unckel, etnólogo alemão que desembarcou no Brasil, nos primeiros anos do século XX, vivendo por quatro décadas entre povos indígenas. Tanta proximidade o levou a abandonar o sobrenome de família para ser batizado pelos Guarani, em 1906, como Nimuendajú, “aquele que encontrou seu lugar no mundo”.
“É muito interessante o fato de que Curt foi, em termos quantitativos, a pessoa que mais estudou a questão indígena no Brasil, percorrendo o pais de ponta a ponta para visitar 50 povos. Toda a vida dele foi voltada para essa pesquisa, registrando várias culturas que eram desconhecidas. Dentro disso, fizemos um recorte enorme para mostrar como ele agiu em relação a alguns povos que foram muito especiais”, conta.
Tania Anaya descobriu o personagem durante a pesquisa para o curta-metragem documental “ÃGTUX” (2005), que aborda a produção artística dos Maxacalis. “Acabei me deparando com um artigo do Curt sobre os maxacalis e fiquei muito intrigada com esse nome alemão misturado à língua guarani. E, quanto mais eu fuçava sobre ele, mais eu encontrava coisas”, destaca.
“Foi mesmo a admiração por uma pessoa muito apaixonada por esses povos, que teve uma vida muito atípica, chegando a ficar os seis meses do ano nas aldeias e os outros seis meses em casa, escrevendo sobre a experiência com os indígenas”, detalha Tania, que filmou em três aldeias – os apinajés, de Tocantins, os Canela-Ramkokamekrá, do Maranhão, e os Guarani, do Rio de Janeiro.
Ela conta que, desde o início, pensei numa animação mais realista, e por isso escolheu filmar nas aldeias antes de fazer a animação. “Foi muito legal porque os indígenas fizeram o papel de pessoas que tinham convivido com Curt Unckel, como avós e tios. Isso nos deu base para fazer um desenho muito mais próximo do que seria o repertório de cada povo”, ressalta.
“A ideia era sair desse clichê quando a gente apresenta o indígena, geralmente mostrado de forma genérica. Conseguimos um material visual incrível e também de som, como diálogos, cantos e os sons ambientes de aldeia. E, por causa disso, a gente acabou fazendo uma mistura de rotoscopia e animação 2D tradicional”, revela.
A rotoscopia, técnica criada por Max Fleischer em 1915 em que a animação é feita sobre cenas captadas em live action, foi aplicada em “Nimuendajú” para fazer os desenhos-chave. Já os entremeios são todos em animação 2D – personagens e cenários são criados em uma perspectiva plana, sem profundidade, diferentemente do 3D.
Parceria com Otto Guerra
No Festival de Annecy, “Nimuendajú” compete pelo Grand Prix da seção Contrachemp, que busca destacar filmes únicos e desafiadores. Concorrerá com desenhos sul-coreanos, mexicanos, dominicanos, canadenses, alemães, australianos, japoneses e checos.
“Era nosso sonho estrear lá”, vibra a realizadora. O único filme brasileiro a vencer na categoria, inaugurada em 2019, foi “Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Pessoas”, de César Cabral, em 2021. Na categoria principal, o país ganhou duas vezes, com “Uma História de Amor e Fúria”, de Luiz Bolognesi, em 2013, “O Menino e o Mundo”, de Alê Abreu, em 2016, que depois seria indicado ao Oscar.
Entre os próximos filmes está uma parceria com o veterano diretor gaúcho Otto Guerra, em um longa-metragem chamado “O Filha da Puta”, que deve chegar às telonas em 2026. Ela também desenvolve a série de TV “Palmeiras do Alto”, com 26 episódios de 11 minutos. A proposta é bem diferente de seus trabalhos anteriores, pois envereda pela comédia e se vale da técnica de stop-motion (imagem feita quadro a quadro).
“Espero que (os filmes) sejam mais rápidos agora, até porque estou com um pouco mais de estrutura. Antes era uma coisa mais errática, conseguindo uma coisa aqui e outra ali, mas agora há mais editais públicos. A partir deles a gente pode planejar, executar, o que é muito importante para um formato como a animação, que precisa de equipes maiores durante um tempo maior, encarecendo tudo”, analisa.