“Vivemos tempos que não são os nossos, aprendemos línguas que jamais seremos capazes de falar, caminhamos para um mundo onde sucumbiremos de tédio, embora por ele tenhamos lutado. Os que vieram antes de nós nos roubaram todas as causas, todas as bandeiras e somente uma opção nos deixaram os que vieram antes de nós: o sexo ou a revolução”. 


Foi assim que Cabo Jorge - com toda a ironia que lhe é peculiar -  expressou a sua indignação. Sentado sobre uma mesa,  já “meio alegre” e rodeado pelas prostitutas do bordel da cidade batizada com seu nome, ele canta. A cena faz parte de um dos atos finais da peça “O Berço do Herói”. Na história, Cabo Jorge, dado como morto na Itália como pracinha da Força Expedicionária Brasileira (FEB), se tornou herói em sua cidade natal. Na verdade, o militar foi ferido em combate e, para não fugir à verdade, fugiu da luta por medo. E, surpreendentemente, anos depois, Jorge reaparece no município - agora batizado de Cabo Jorge -  vivo e são, como se tudo não passasse de uma grande gozação.

Livro “Herói Mutilado – Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura” (Companhia das Letras), da jornalista Laura Mattos. Foto: Companhia das Letras/Divulgação

 

Escrita em 1963 por Dias Gomes, a comédia política - que tinha no elenco nomes como Milton Moraes (Cabo Jorge), Tereza Rachel ( a “viúva” Antonieta) e Sebastião Vasconcelos (Major Chico Manga) - deveria ter estreado no Teatro Princesa Isabel do Rio de Janeiro, na noite de 22 de julho de 1965. Duas horas antes da estreia, a montagem foi interditada pela censura. Sua primeira encenação só foi acontecer em 1976 e nos Estados Unidos. 


“A peça foi escrita em 1963, antes do golpe militar, e quando veio 1964,   naturalmente esse texto já foi ressignificado. O Dias Gomes era filiado ao Partido Comunista, então, por si só, isso já era suficiente para deixar os militares atentos e com falta de vontade em relação às obras dele. E sem contar que ‘O Berço do Herói’ tem um protagonista que é um falso herói militar. Por isso ela jamais seria liberada naquele contexto”, explica a jornalista Laura Mattos, que lançou em 2019, o livro 'Herói Mutilado – Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura'  (Companhia das Letras), resultado de sua tese de mestrado na Escola de Comunicações e Artes da USP. 


Dramaturgo, compositor e professor do Departamento de Artes Cênicas da UnB (Universidade de Brasília), na área de Teoria Teatral, Fernando Marques destaca que o que mais chama sua atenção na peça é o próprio tema do herói e da sua inviabilidade naqueles tempos e, por que não, ainda em nossos dias, já que o texto permanece atual.

“É uma peça escrita para negar a existência de heróis, de seres excepcionais. A peça nos diz que a noção de heroísmo é usada pelas elites políticas, ao lado da ideia de pátria, para “vender” as guerras que de fato não interessam às pessoas comuns. Essas elites estão representadas na trama pelo major Chico Manga, deputado federal e líder da pequena cidade que veio a se chamar Cabo Jorge em homenagem ao suposto herói da FEB na Segunda Guerra Mundial. Cabo Jorge, na Itália, em 1944, teria enfrentado “as terríveis hordas nazistas” sacrificando a própria vida e animando, com a sua coragem, os soldados brasileiros a vencerem aquele embate. Mas a história do Cabo já nasce falsa, forjada pelo general, então comandante do batalhão. A lenda se consolida e atrai turistas, porém. Quando Jorge reaparece perfeitamente vivo na cidade, agora movimentada por quermesses e um bordel, os que vêm lucrando com a farsa ficam aflitos e reagem para não perder os privilégios que a exploração do mito lhes trazia”, analisa o professor. 


Tentando burlar

Dez anos depois da proibição da montagem teatral, Dias Gomes tentou burlar a censura e adaptou sua obra para a televisão. Em vez de um militar, agora o “herói” é um santeiro chamado Roque. A sátira política - então protagonizada por Betty Faria (Porcina), Lima Duarte (Sinhozinho Malta) e Francisco Cuoco (Roque Santeiro) - chegou a ter 30 capítulos gravados. Quando a Censura Federal percebeu que se tratava de uma adaptação do texto teatral vetado anteriormente, não permitiu que ela estreasse no horário nobre da Globo naquele agosto de 1975.


No dia da proibição, o locutor Cid Moreira leu no “Jornal Nacional” um editorial assinado pelo presidente da emissora, Roberto Marinho, anunciando o veto. “A essência da história foi mantida, com toda a crítica social, mas o Dias Gomes fez alguns ajustes, como tirar a patente do protagonista; ele deixou de ser um militar. Mas, um telefonema dele para o Nelson Werneck Sodré (historiador, intelectual e também comunista) foi grampeado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI). Na ligação, o Dias Gomes teria dito que havia enganado os censores com a adaptação de ‘O Berço do Herói’ e que eles nem iriam perceber. Foi a primeira vez que uma novela foi inteiramente censurada e dessa forma tão drástica. Mas acabou sendo um tiro no pé do próprio governo, porque isso jogou luz na censura”, relata Laura.


Cláudio Cardoso de Paiva, professor titular no Departamento de Comunicação da UFPB, acredita que o cerceamento tanto da peça quanto da novela se deve principalmente ao nome de Dias Gomes. “Ele era considerado um autor comunista pelos censores ‘intelectualmente limitados’ (como ocorre hoje com os setores reacionários da sociedade). Eles acreditavam que seria um atentado à TFP - ‘Tradição, Família e Propriedade’, à moral cristã conservadora e aos chamados “bons costumes”. No segundo caso (TV) talvez a censura se deva às idiossincrasias interiores à própria Rede Globo, receosa de que a novela espantasse algumas faixas da audiência, pois a televisão aberta ainda é muito prestigiada pelas famílias e setores conservadores”, expõe.


O fato é que a Globo teve que se virar para colocar no ar e às pressas um novo folhetim. Para preencher o buraco na grade, foi exibida uma reprise compacta de “Selva de Pedra” (1972), de Janete Clair - então esposa de Dias Gomes - , posteriormente substituída por “Pecado Capital” (1975), da mesma autora. Parte do elenco - inclusive o trio de protagonistas (Betty Faria, Francisco Cuoco e Lima Duarte) e dos cenários de “Roque Santeiro” foram aproveitados. 


Somente uma década depois e com o fim da ditadura militar é que finalmente “Roque Santeiro” estreou com toda a pompa e circunstância, mas desta vez, com outro elenco (apesar de alguns atores terem sido novamente escalados como Lima Duarte) e como um símbolo da volta da liberdade de expressão. 


Entretanto, nem tudo foram flores, como lembra a própria Laura Mattos. Em seu livro, ela analisa a partir de cerca 2 mil páginas de documentos oficiais produzidos durante a ditadura, além do acervo pessoal do próprio Dias Gomes -  a tripla censura da história: a peça de teatro em 1965, a primeira versão como novela proibida em 1975 e, quando finalmente foi ao ar, dez anos depois. “Achei um recorte muito rico, você ter uma tripla censura em diferentes épocas - que é 1965, 1975 e 1985, começo, meio e fim da ditadura militar - diferentes formatos (peça e novela) e especialmente uma obra que fala justamente de mito, de falsos heróis. Mas na de 1985, a censura foi mais velada”, frisa.


Laura esclarece que a trama, que estreou em junho daquele ano, foi alvo de cortes de todos os tipos e que a ideia era fazer uma separação entre o que era censura política e censura moral/bons costumes. “E por si só isso já é uma divisão irreal, porque a censura tem sempre um fundamento político. Mesmo eles fazendo essa separação, tipo: ‘a gente vai só censurar cenas de adultério, cenas de insinuações homossexuais ou cenas mais eróticas’, mesmo eles fazendo essa diferenciação, era uma censura. Mudaram alguns diálogos, algumas frases, eles implicaram muito, por exemplo, com o personagem do Cláudio Cavalcanti (Albano), que era um padre da Teologia da Libertação, uma corrente mais de esquerda da Igreja Católica”, cita. 


Outro ponto que despertou a curiosidade da pesquisadora foi o fato da censura na televisão não ser tão estudada - sobretudo no meio acadêmico - e divulgada como acontece com outras manifestações culturais (música, cinema, teatro) e até com relação à censura da própria imprensa.

 “Todas as censuras são terríveis e igualmente importantes. Mas em relação às três censuras que a obra do Dias Gomes sofreu, a da redemocratização, que é essa do ‘Roque Santeiro’ de 1985, é a que mais me chama a atenção pois ela revela muito do que é a censura. Ou seja, que a censura não é restrita a períodos ditatoriais, não é restrita à direita, nem à esquerda; é suprapartidária. Quando o clima é propício à censura, ela se dá independentemente de a legislação se adaptar ao olhar cultural daquele momento”, analisa.

 

 

Tereza Rachel e Milton Moraes, que interpretavam
Cabo Jorge e Viúva Antonieta, na peça O berço do herói, em 1965; Na novela Roque Santeiro, personagens seriam Viúva Porcina e Roque.
Foto: Arquivo Público do Estado de São Paulo/ Reprodução do livro  ‘Herói Mutilado – Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura’ (Companhia das Letras)
 
 
 

 

 

Pingue- pongue

 
Fernando Marques (professor do Dep. de Artes Cênicas da UnB, dramaturgo e compositor).


1 - Por que o senhor acha que essa história (seja a peça, as novelas) foi tão censurada?


A peça foi encenada pela primeira vez em 1965, mas havia sido escrita em 1963, antes portanto do golpe militar. Em 1963, ainda seria possível encenar uma peça teatral ironizando militares e civis, denunciando as fraudes ideológicas. Em 1965, já não era assim. Iná Camargo Costa, no livro Dias Gomes: Um dramaturgo nacional-popular (Unesp, 2017), lembra que a estreia aconteceria no Teatro Princesa Isabel, propriedade do Estado da Guanabara, então governado por Carlos Lacerda, famoso pela retórica e sumamente reacionário. Lacerda chegou a dizer na ocasião que “quem manda no teatro da Guanabara é o governador”. Havia também a acusação de que a obra seria pornográfica. O político teve naquele momento a oportunidade de bajular os generais e vetou a peça “quatro horas antes da estreia”. Mais teatral, impossível... O texto converte-se em novela 10 anos depois, quando ocorre nova proibição. A peça chegaria ao palco em 1983, com grupos de Campinas. Em 1985, a novela finalmente pôde ser realizada.  

2 - E qual, na sua opinião, o motivo dessa história fazer tanto sucesso até hoje, seja no palco, com musicais, ou a própria novela que está sendo reprisada no Globoplay Novelas (ex-Viva) e com bons índices de audiência?

A qualidade da história, simples, mas engenhosa; e, reitero, o tema do falso herói que é, afinal, simplesmente humano e não a encarnação de um mito. Há uma fala de Cabo Jorge que vale citar: “Sabe o que eu acho? Que o tempo dos heróis já passou. Hoje o mundo é outro. Tudo está suspenso por um botão. O botão que vai disparar o primeiro foguete atômico. Este é que é o verdadeiro herói. O deus-botão. Pensem bem: o fim do mundo depende do fígado de um homem. (ri.) E vocês ficam aqui cultuando a memória de um herói absurdo. Absurdo sim, porque imaginam ele com qualidades que não pode ter. Coragem, caráter, dignidade humana... não veem que tudo isso é absurdo? Quando o mundo pode acabar num minuto. E isso não depende de mim, nem dos senhores, nem de nenhum herói. (...) Adianta não. Vocês querem porque querem um herói. A glória da cidade precisa ser mantida. A honra do Exército precisa ser mantida” (Gomes, 2022, p. 85). O texto reaparece mais tarde, renomeado como “Roque Santeiro” ou “O Berço do Herói, com mudanças no enredo e nos personagens.


  

3 - Qual a importância e o principal legado de Dias Gomes para o nosso teatro e a nossa cultura de uma maneira geral?


Dias Gomes é um dos grandes dramaturgos em língua portuguesa, sem dúvida. Ele faz parte de uma geração que pensou um teatro político que refletisse o país e que fosse, ao mesmo tempo, esteticamente exigente. Trata-se do programa nacional-popular que dividiu com Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri, Vianinha, Paulo Pontes. Não formaram um grupo; o que digo é que respondiam a uma tendência e a aspirações semelhantes.

A preocupação ética e as formas modernas de compor, em parte derivadas de Bertolt Brecht (autor que ele estudou sem adesão irrestrita), ressaltam em sua obra. Nela, chamaria a atenção para O Santo Inquérito (1966), que analisa a intolerância inquisitorial em Portugal e no Brasil; Campeões do Mundo (1980) e o lúdico (e crítico) O Rei de Ramos, musical de 1979 que merece ser revisitado. Dias Gomes adaptou esse programa político-estético às novelas, renovando-as ao ligá-las ao país real.