24 de junho de 1985. Amanhece em Asa Branca. O galo canta e aos poucos os moradores começam um dia que será histórico para a cidade: a inauguração da estátua do maior herói asa-branquense. Naquela longínqua noite de São João ia ao ar o primeiro capítulo de uma novela que se tornou um marco da teledramaturgia brasileira, “Roque Santeiro”.

 

De autoria de Dias Gomes (1922-1999) e Aguinaldo Silva, a sátira da exploração política e comercial da fé ainda é um sucesso mesmo após 40 anos de sua estreia. Disponível no catálogo do Globoplay e em exibição até 4 de julho, de segunda a sábado, às 11h15, com reapresentação às 19h20, no Globoplay Novelas (ex-Canal Viva) - a trama traz a história dos moradores da fictícia Asa Branca que vivem em função dos supostos milagres de Roque Santeiro, que teria morrido como mártir. No entanto, o falso santo reaparece em carne e osso 17 anos depois, ameaçando o poder e a riqueza das autoridades locais.


A espalhafatosa e fogosa viúva Porcina (Regina Duarte) - aquela que foi sem nunca ter sido -  o manda-chuva Sinhozinho Malta (Lima Duarte) com seu inesquecível bordão “Tô certo ou tô errado?”, o charme de José Wilker na pele do sarcástico e divertido protagonista, um simpático ceguinho que enxerga mais do que muita gente e dá notícias de tudo o que acontece na cidade, um lobisomem que assombra os moradores nas noites de lua cheia são alguns dos personagens que até hoje habitam o imaginário coletivo do público brasileiro em uma trama que fazia críticas sociais, mas com humor. Sem contar a trilha sonora memorável com canções de grandes nomes da MPB como Dominguinhos, Sá & Guarabyra, Zé Ramalho, Alceu Valença, Ivans Lins, entre outros.

 

Para Cláudio Cardoso de Paiva, professor titular no Departamento de Comunicação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e autor da tese “Roque Santeiro, Uma alegoria do Brasil - Atualizações do regional na cultura pop da televisão”, o êxito do folhetim global se deve a uma série de fatores. “‘Roque Santeiro’ é investida em várias camadas mitológicas (eventos, cenas e seres extraordinários) que atraem a atenção do grande público. Há o pitoresco hotel da cidade e a boate Sexus (com as belas Yoná Magalhães, Claudia Raia e Isis de Oliveira), onde se desenrolam as grandes aventuras (para o terror das beatas) e o cabaré dos pobres (na rua da Lama), como nas pequenas cidades do interior. Há os galãs (como Fábio Jr).; assim como há os conflitos de gerações (que dão força ao enredo)", descreve o professor.

Cláudio ainda acrescenta outros elementos: "Há o padre Albano (“comunista”) que se alia aos marginais e deserdados da terra. Há um lobisomem que assombra as noites de lua cheia, cuja identidade se mantém em segredo até o fim da trama. Há o triângulo amoroso (Roque-Porcina-Sinhozinho Malta) que mexe com o imaginário popular (e a cena final – em suspense - que remete ao filme ‘Casablanca’). Há figuras de metalinguagem (o teatro, o cinema, a televisão dentro da telenovela, algo excitante ), relembremos que há cenas filmadas em Dallas (EUA), os “caipiras” de Asa Branca (da indústria cultural tupiniquim) que invadem a grande ‘indústria cultural’ norte-americana, fazendo relação com o sucesso do seriado estadunidense, com muito chiste e gargalhada. Ou seja, tem todos os ingredientes que fazem o sucesso de uma grande telenovela”, destaca.

Dias Gomes é o autor de "Roque Santeiro". Foto: Reprodução/Acervo Globo

 

Jornalista e mestre pela USP e autora do livro “Herói Mutilado – Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura” (Companhia das Letras), Laura Mattos comenta o assombro que a então novelas das 20h causou e como ela era praticamente uma unanimidade no país. “Ela teve uma receptividade muito generalizada, foi algo impressionante. Brinco no meu livro que todo mundo amava ‘Roque Santeiro’, menos um grupinho ali de meia dúzia de censores que estavam todos os dias cortando os capítulos”, relata Laura lembrando que tanto a peça “O Berço do Herói”, também de autoria de Dias Gomes e que inspirou as novelas (a primeira versão de 1975, e que acabou não indo ao ar, e a de 1985) - sofreram censuras do governo militar, mas de formas distintas 


Redemocratização

Partiu de um mineiro, o jornalista e escritor Otto Lara Resende a ideia de levar ao ar uma nova versão de “Roque Santeiro” em 1985, ano em que a Globo, aliás, completava 20 anos. Laura Mattos explica que Otto era uma espécie de assessor de luxo de Roberto Marinho quando sugeriu retomar a trama do falso herói. “Eles estavam numa conversa sobre qual seria a próxima novela das 20h e então o Otto teve essa sacada: ‘Vamos pegar a novela do Dias Gomes e transformar a novela da censura na novela do novo país, da retomada da democracia”, conta.


A jornalista ressalta que “Roque Santeiro” estreou tendo como pano de fundo justamente aquele clima de euforia pelo fim da ditadura. “‘Roque’ ficou eternizada na memória afetiva do país de um jeito bem singular. Embora a gente tenha muitas outras novelas que o brasileiro guarda com um grande carinho, como a própria ‘Vale Tudo’ -  que está no ar agora com o remake -  eu acho que aquele momento desse resgate da liberdade de expressão e aquela coisa colorida do Dias Gomes foi muito especial e significativa. E tem aquela coisa da comédia. ‘Roque Santeiro’ é uma novela gostosa e divertida. E sem contar que a obra do Dias Gomes é muito atual e atemporal. Ele tem personagens clássicos que eram tão exuberantes, imperfeitos, mas engraçados ao mesmo tempo e isso é bem típico dele”, analisa.

José Wilker interpretou o personagem-título da trama que estreou há 40 anos. Foto: Reprodução/Globo

 

 


O elenco estelar formado por grandes atores como Regina Duarte, Lima Duarte, José Wilker, Paulo Gracindo, Ary Fontoura, Eloísa Mafalda, Othon Bastos e Armando Bógus - só para citar alguns - também foi um dos grandes trunfos da produção. “Roque Santeiro” foi uma das novelas de maior audiência da história da televisão. Em Recife, segundo jornais da época, o sucesso no Ibope levou candidatos às eleições para deputado a cancelarem comícios no horário em que a produção era exibida.

Desfecho


O capítulo final da trama chegou a alcançar 100% de audiência, ou seja, quem estava com a televisão ligada naquela noite, estava na Globo. Pelo menos é o que assegura em sua autobiografia “O Lado B de Boni”, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, ex-diretor e ex-vice-presidente de Operações da emissora carioca. Recentemente, um dos diretores do folhetim, Jayme Monjardim, divulgou uma nova informação. “Não foi esse capítulo que deu 100% (de audiência). O que deu 100% foi duas semanas antes de acabar a novela”, frisou.


Divergências à parte, o episódio 209 e derradeiro da novela, exibido no dia  22 de fevereiro de 1986, parou o país. Em depoimento ao site “Memória Globo, a atriz Cassia Kis, que fazia a Lulu na novela, lembrou que o último capítulo de “Roque Santeiro” foi ao ar exatamente na noite de estreia da peça “Fedra”, em que contracenava com Fernanda Montenegro, e que a preocupação de todos era de que não aparecesse ninguém para ver a montagem, em cartaz, no Rio de Janeiro.


A jornalista Laura Mattos reforça a tese de que o final do folhetim realmente foi um evento de mobilização nacional. “Para você ter ideia, a Ilustrada (da Folha de S. Paulo), que sempre foi um caderno cultural mais intelectualizado e dava menos atenção para assuntos de televisão, fez uma cobertura digna de final de Copa do Mundo. Eles mandaram um repórter num cinema para entrevistar quem eram aqueles ‘alienígenas’ (risos) que estavam num cinema na hora em que estava passando o último capítulo da novela. Estava todo mundo assistindo “Roque Santeiro”. Foi um grande acontecimento”, pontua.

 

 


A jornalista e autora de “Herói Mutilado – Roque Santeiro e os bastidores da censura à TV na ditadura” ressalta que o desfecho da história (aliás, foram gravadas três versões de finais) mostrando o personagem título indo embora de Asa Branca e o mito do falso herói permanecendo não deixa de ser uma crítica de Dias Gomes ao próprio país. “O autor prova que, após  tudo o que houve - o Roque voltando, abalando as estruturas e depois concordando em ir embora - ele está dizendo que o ‘status quo’ ia ser mantido; ele está pontuando uma crítica de que é muito difícil mudar as coisas no Brasil. E, curiosamente, a gente estava vivendo naquela época, a Nova República. E o próprio Dias afirma em uma entrevista que a ‘Nova República é uma velha que fez plástica’, por conta de toda a estrutura de violência, de repressão, de autoritarismo que ainda era meio mantida e se a gente for pensar, até hoje, ainda é um pouco”, opina Laura Mattos.