Primeiro realizador brasileiro a subir no palco do Oscar e ganhar uma estatueta, Walter Salles está novamente em cartaz nos cinemas, pouco mais de três meses após receber o prêmio de Melhor Filme Internacional por “Ainda Estou Aqui”. Curiosamente, não é um filme novo. O documentário “Jia Zhangke, um Homem de Fenyang” é de 2014.
Apesar dessa distância de 11 anos, é justamente o longa-metragem de Salles anterior ao seu grande sucesso. Vale aqui um parêntesis: em 2017, ele lançou um curta, “Quando a Terra Treme”, que trata do rompimento da barragem de Mariana, em Minas Gerais, e integra o filme de episódios “Em que Tempo Vivemos?”.
No documentário, Salles nos apresenta o trabalho singular de Jia Zhangke, cineasta chinês que se tornou referência para o brasileiro após a realização de obras como “Plataforma” (2000) e “Em Busca da Vida” (2006). Esse reconhecimento – incomum quando dirigido para alguém mais jovem (Zhangke tem 55, e Salles, 69) – é evidenciado no filme.
As primeiras imagens de “Jia Zhangke, um Homem de Fenyang” põem o chinês em sua terra natal, na região de Shanxi, cenários de vários de seus trabalhos. Zhangke passeia pela cidade, estabelecendo relações entre fatos ocorridos com ele, principalmente quando mais jovem, e sequências marcantes, destacando a importância da memória.
Essa memória é potencializada por um país em transformação, quando a China se abre para o mundo, adotando costumes ocidentais e tirando o chão de comunidades – de forma literal, muitas vezes, ao provocar uma migração interna por causa de grandes obras. “Em Busca da Vida”, por exemplo, uma cidade é engolida pelas águas de uma barragem.
Aos poucos, Salles costura a imagem de um cineasta que exibe um olhar muito poético sobre o que o rodeia, a partir da câmera. “Sinto um grande apreço pela câmera porque, sem ela, eu não poderia captar as coisas da vida e ficaria sozinho com as minhas sensações. A essência da vida se encontra aí, nesse oceano humano”, explica Zhangke.
Um exemplo disso está no depoimento da atriz Zhao Tao, presente em quase todos os filmes e esposa do diretor. “Contei sobre a minha vida de bailarina para o Jia, minhas histórias com os colegas de turma, numa idade em que flertávamos muito. Falei das dançarinas que, nesses lugares, parecem levar uma vida ótima, mas eram muito solitárias. No ano seguinte, ele disse que filmaria as minhas histórias”, lembra.
O próprio Zhangke explica esse princípio ao dizer que o cotidiano tinha sumido das telas desde 1949, ano da Revolução Chinesa. “As fraquezas humanas, os atos espontâneos, até a linguagem foram alterados. Os personagens deixaram de ter sotaque. Não havia mais terra natal nem identidade cultural. A maioria dos chineses é parecida com as pessoas dos meus filmes”.
Para o diretor, seus personagens são “não detentores de poder”, sem qualquer controle sobre os recursos da sociedade. “São submetidos à nossa época”, assinala. Com essas palavras, é possível compreender a razão do interesse de Salles pelo colega. Na época de lançamento do documentário, ele sublinhou um lugar que poucos conseguiram alcançar: a capacidade de nos refletir de uma forma tão aguda.
Novo filme do cineasta chinês também é lançado
Mais recente longa de Jia Zhangke, que também entra em cartaz hoje nos cinemas, “Levados pelas Marés” caminha em dois sentidos: uma mais pessoal, sobre o desenvolvimento da trajetória do diretor, e outra mais histórica, sobre as transformações pela China nos últimos 30 anos.
Esse olhar mais amplo surge no filme a partir de um trabalho de colagem, em que Zhangke recorre aos próprios filmes para montar essa passagem do tempo, entremeada por filmagens atuais. O cineasta não esconde a carga documental ao se deixar levar pelas imagens conflitantes de uma época.
Ao focar principalmente dois personagens, o realizador constrói a história de um casal ao longo do tempo, entre altos e baixos. É um relato triste, como é também “Levados pelas Marés”. Zhangke caminha entre a nostalgia de uma vida anterior e a violência como esse cenário é transformado.
Por incrível que pareça, ele parece saudosista em relação ao regime maoista, já que, no lugar de um ganho, a abertura de mercado arranca o que se tem mais precioso: a identificação com a terra natal, a partir de cidades sendo destruídas implacavelmente para dar vez ao progresso, criando fantasmas existenciais.
A narrativa é conduzida principalmente pela personagem de Zhao Tao, a mulher que busca reencontrar a sua grande paixão, oferecendo um olhar mais feminino para esse universo de transições, talvez a solução encontrada por Zhangke para a nossa sobrevivência.