Na primeira sala após a bilheteria, no térreo da unidade belo-horizontina do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-BH), logo que o visitante entra, quem recebe o olhar não é um quadro monumental nem uma escultura em bronze, mas os cadernos delicados e cuidadosos, de diferentes tamanhos e formatos, dispostos em vitrines baixas como pequenos relicários. São os diários visuais que o artista brasiliense Antonio Obá preenche, religiosamente, desde o ensino médio. Ele se apropria, diz, “de qualquer caderninho que aparecer, do que estiver na frente” para “organizar ideias – e, ao mesmo tempo, esvaziar‐se do peso delas”. Ali, o público testemunha o bastidor de sete anos de elucubrações que, por  vezes, transbordam para outras superfícies, como o esboço de um pé humano do qual brota um galho seco de árvore, embrião da instalação “Ka’a Pora”, apresentada mais adiante na mostra “Finca-Pé: Estórias da terra”, que entra em cartaz nesta quarta-feira (25) na capital mineira após cumprir temporada no Rio de Janeiro.

Os desenhos exibidos nessa sala inaugural – executados em grafite, guache, bico de pena ou nanquim dourado – revelam uma fauna híbrida, ora humana, ora animalesca, que o artista associa a “bestiários medievais” e ao fascínio por Bosch. E, para ele, o traço paciente evidente nesses trabalhos e ensaios impõe um tempo diferente, “não o da rapidez”, mas o da demora necessária para que a imagem emerja.

À medida que saímos desses relicários de papel, a exposição vai se adensando naquilo que a curadora Fabiana Lopes chama de “uma elaboração e construção de pensamento a céu aberto”. Para ela, a exposição, que também reúne trabalhos do mineiro Marcos Silveira, é antes de tudo um convite a acompanhar, passo a passo, o modo como o artista pensa com as mãos, com o corpo e com o território. “A ideia de Terra que Obá traz se desdobra em várias dimensões”, aponta a curadora: planeta, bioma, chão concreto, mas também jardim subjetivo, sertão interior e memória afetiva que só existe porque foi vivida e sentida. O próprio título, reflete ela, sintetiza esse gesto: fincar o pé como quem insiste, mas também como quem cria raízes; narrar “estórias” sem H, porque o que interessa não é o fato em si, mas, sim, o imaginário que ele dispara.

Essa costura entre pensamento e gesto reaparece na série “Crianças de coral – nigredo/coivara”, que ocupam outra sala da mostra, em que doze rostos infantis, desenhados a carvão em pó, emulam um canto que também é choro, que também é grito. Obá pontua que “carvão nada mais é que uma árvore que morreu… mas vive novamente na linguagem”, tratando o material como matéria viva, capaz de incorporar o ciclo morte-vida-morte que atravessa toda a mostra. Nas telas, cada camada de carvão é tratada como se o artista esculpisse luz e sombra, num réquiem – isto é, uma missa fúnebre – que ganha novos contornos por onde passa. No Rio de Janeiro, com o CCBB próximo à Igreja da Candelária, o painel parecia com a chacina de crianças de 1993, que ocorreu na região. Em BH, o fundo terroso por trás dos rostos infantis, remetem a outro trauma: os rompimentos de barragens de 2015 e 2019, em Mariana e Brumadinho, respectivamente.

Antonio Obá em frente a painel com a série 'Crianças de coral – nigredo/coivara', no CCBB-BH / Crédito: Alex de Jesus/O Tempo

E se as crianças encarnam nossa primeira experiência de assombro diante do mundo, tendo seus rostos intencionalmente descaracterizados pelo artistas, a videoperformance “Encantado”, na galeria seguinte, vai refletir a relação com o território e, de alguma maneira, com a religiosidade. Na projeção, Obá assume a forma de um peregrino que atravessa o Cerrado do Distrito Federal, com o corpo todo coberto por uma vestimenta composta de trançados e retalhos, carregando, nas mãos, um grande crucifixo metálico. Em certo momento, ele desata os nós de retalhos e os coloca sobre os ombros, em uma coreografia que lembra, por exemplo, a representação de Omulu ou Obaluaiê, o orixá da cura e das doenças, evocando a noção de sincretismo, característica basilar da religiosidade e da cultura brasileira.

Esta é a sua primeira performance desde 2017, ano em que ele e outros tantos artistas foram perseguidos por movimentos políticos conservadores, em uma onda de ataques que levou à censura da mostra “Queermuseu”, no Santander Cultural, em Porto Alegre (RS), posteriormente reaberta no Rio de Janeiro. À época, uma obra de Antonio Obá, “Et Verbum”, uma caixa de madeira com hóstias com partes do corpo escritas, foi um dos alvos dos perseguidores. Além disso, vídeos de outra performance sua, que sequer estava sendo apresentada, também foram resgatados e usados para alimentar o pânico moral que se buscava provocar na população.

“A linguagem performativa volta a fazer sentido para mim porque traduz esse caminhar por territórios externos e internos”, explica o artista, citando de Guimarães Rosa a ideia de que cada sertão é também o sertão de dentro.

Este novo trabalho e a própria experiência de perseguição, em 2017, avalia o artista em conversa com O TEMPO, encontram eco em um episódio vivido pelo músico mineiro Sérgio Pererê, alvo de ataques após realizar o show do seu novo álbum, “Samba de Preto Velho”, dentro de uma igreja, em Ouro Preto. “É de uma hipocrisia imensa”, protesta Antonio Obá, “porque a história brasileira é toda feita desse sincretismo que muita gente finge não ver”. Na última semana, o músico decidiu mover uma ação judicial para vetar a circulação do vídeo nas redes sociais

Grupo assiste à videoperformance 'Encantado', de Antonio Obá / Crédito: Alex de Jesus/O Tempo

O percurso leva, enfim, à instalação Ka’a Pora – palavra tupi que significa “habitante do mato” e deu origem ao termo caipira, além de evocar a entidade da floresta que protege plantas e animais. Vinte e quatro pés de bronze dos quais brotam galhos secos – como aquele visto em um esboço, na primeira sala – tomam a galeria. Obá conta que a ideia surgiu em longas pedaladas solitárias pelos descampados de Brasília, ao notar como o Cerrado se incinera na estiagem para, na primeira chuva, rebrotar de um verde elétrico. “A obra se relaciona com a resistência, mas também com essa capacidade de renascer que o cerrado ensina”, expõe. Fabiana Lopes reforça que a instalação foi o “ponto de partida para todo o pensamento construído na exposição”, pois sintetiza a sensação de voltar à Terra natal e percebê-la com outros sentidos. Para ela, Ka’a Pora não deve ser tomada como uma obra ilustrativa, mas como meio para instaurar um campo sensorial onde matéria, memória e futuro se confundem.

E enquanto o corpo e a paisagem se fundem, o processo de feitura ganha, na mostra, estatuto de obra. Os diários que abriram o percurso reaparecem na fala do artista – ou como memória ao ver aquele desenho rascunhado ganhando tridimensionalidade – quando ele sustenta que suas elaborações “se descortinam no fazer”. “Enquanto pinto, penso com a pintura; o que a imagem diz além do que se vê, quais intertextos ela tece”, detalha, recusando a ideia de obra fechada, com significado inequívoco. Fabiana Lopes corrobora: “Cada sala está menos preocupada em fornecer uma bula do que em oferecer indícios, caminhos, camadas de percepção que escapam à narrativa pronta”. 

Intimidade com a terra 

O artista mineiro Marcos Silveira, que usa pigmentos naturais para conceber suas telas / Crédito: Alex de Jesus/O Tempo

Na mostra “Finca-Pé: Estórias da terra”, o trabalho de Antonio Obá é recorrentemente posto em diálogo com o do mineiro Marcos Siqueira, artista nascido em Betim e radicado na Serra do Cipó, que extrai pigmentos naturais diretamente do solo para pintar cenas marcadas pela memória rural. 

Fabiana Lopes enxerga no artista “um observador minucioso” cuja pesquisa de cores começa na lavoura, passa pela análise de camadas geológicas e continua na lida de brigadista contra incêndios, “calibrando os sentidos com as texturas do lugar”. O próprio Siqueira descreve sua prática como uma busca por “intimidade com o cheiro e as camadas da terra”, tentando “entender o reboliço que sinto quando olho o horizonte”.

SERVIÇO:
O quê. Exposição 'Finca-Pé: Estórias da terra', de Antonio Obá
Quando. A partir desta quarta-feira (25), às 10h. Até 1º de setembro. Visitação de quarta a segunda, das 10h às 22h
Onde. Centro Cultural Banco do Brasil - Belo Horizonte (CCBB-BH, praça da Liberdade, 450, Funcionários)
Quanto. Gratuito. Ingressos disponíveis no site ccbb.com.br/bh e na bilheteria do centro cultural.