OURO PRETO - “A gente está sendo invadido (hoje) como Portugal fez (na colonização). Está muito difícil trabalhar do nosso jeito, sendo respeitado, ganhando direitos e mantendo o diálogo”, assevera Anna Muylaert, uma das principais diretoras do Brasil, responsáveis por “Durval Discos” e “Que Horas Ela Volta?”, durante debate realizado na tarde desta quinta-feira (26), pela Mostra de Cinema de Ouro Preto.
Em bate-papo no Centro de Convenções da cidade histórica, sobre o tema “O Humor das Mulheres”, que também teve participação da atriz Marisa Orth, a a cineasta não poupou “a Netflix e seus filhotes”, criticando o método de trabalho imposto pelas plataformas de streaming. Para Anna, essa “invasão” é muito perigosa, por estar prejudicando a “construção de identidade cultural no Brasil e no mundo”.
“É um tema muito importante para mim hoje: como a invasão do streaming está destruindo está destruindo as maneiras nacionais de se fazer cinema e televisão no mundo inteiro. Não é só no Brasil. É algo que precisamos ficar atento porque, daqui a 20 anos, a gente pode virar pasta de amendoim”, salienta a diretora, que chama a atenção para a falta de regulamentação do Video on Demand (VOD), já que os projetos estão parados ainda no Congresso.
“Uma das grandes práticas do cinema era a argumentação e a contra-argumentação, para haver o debate. E, de repente, aparecem as notes, as observações que os streamings americanos fazem para os diretores que vêm por escrito e são assinados por uma empresa. Não tem contra-argumentação. Aquilo é quase uma ordem. É assim que se está trabalhando hoje série e filmes que vêm desta falange”, pontua.
Ela citou uma situação envolvendo o seu protagonista de “Mão Só Há Uma” (2016), Daniel Botelho, que, na época das filmagens, tinha 13 anos. “A mãe do Daniel me ligou, pedindo para conversar com ele porque está querendo largar a profissão. Ele foi à minha casa e perguntei o que estava acontecendo. Ele contou que fez uma série para a Disney+ e, numa das cenas, ele ficou sozinho em alto-mar com uma menina”, conta.
“Os assistentes os levaram de jet ski e disseram que já iriam voltar. Quando ele percebeu, estava ele e a menina sozinhos. Esse é o nível de destrato que está acontecendo, em todos os níveis da equipe”, lamenta Anna, que alerta para o fato de esta forma de trabalho estar influenciando também o cinema independente. “A Netflix e seus filhotes estão influenciando em tudo”, condena.
Marisa Orth fez coro às ponderações da cineasta, com quem trabalhou em “Durval Discos”, observando que, nesta prática atual, os executivos estão mais preocupados em ter uma celebridade no elenco do que o roteiro. “Como assim? Só depois é que vão ler o roteiro? Se não tiver celebridade nem leem o roteiro. Sou muito old school. Antes, o roteiro que puxava tudo. Se fosse legal, aí sim iria pensar no casting”.
Esses maus tratos, como Anna Muylaert define as relações de trabalho com as plataformas, são exemplificados pela atriz homenageada da Mostra. “Eles dizem: ‘Quem você pensa que é? Aqui não é Globo, não’. Como se, na Globo, a gente fosse muito bem tratado, o que é outra falácia. Mas conseguem ser pior. Lá (na Globo) tem CLT, uma lei trabalhista que rege a empresa. Elas (as plataformas) entram e nem obedecem o mínimo da lei”, dispara.
(*) O repórter viajou a convite da organização da Mostra de Cinema de Ouro Preto