Bárbara Colen sofreu um aborto quando estava envolvida na preparação de “O Silêncio das Ostras”. Protagonista do primeiro longa-metragem de ficção de Marcos Pimentel, uma das principais estreias desta quinta-feira (26) nos cinemas, a atriz mineira entrou no set em Matipó, cidade da Zona da Mata, e maio de 2022, sentindo toda a dor desse luto. O que poderia afetar severamente a atuação acabou ajudando a atriz não só a superar a perda como também na construção de personagem, Kaylane, que vive uma situação de abandono social.
“Eu fiz todo o filme nessa dor, nesse luto, nessa dimensão morte e vida que tinha muito a ver com a história. Foi um processo muito forte. A Kaylane foi um processo de cura daquilo que estava vivendo. É curioso como as coisas vão se entrelaçando com o trabalho. Eu acredito muito nesse momento certo de cada trabalho. E foi bem bonito estar com ela naquele momento”, destaca Bárbara, que teve que segurar o choro em vários momentos das filmagens. Até porque Kaylane nutria uma outra visão sobre as agruras que enfrenta desde criança.
“Tinha muitas cenas que eu queria chorar. Às vezes eu chorava antes para conseguir fazer as cena, sabe? Estava vivendo coisas tão duras, mas não eram drama molhado. Não podia sentir pena da personagem. A Anna (Kutner, preparadora de elenco) sempre falava isso: a Kaylane não tem autopiedade. Eu não podia entrar num registro dramático porque ela não queria sair daquele lugar. Estava feliz ali. Se os irmãos continuassem, se a mãe continuasse, se a vila continuasse, ela iria viver super bem. Não precisava de mais nada”, analisa Bárbara.
A atriz destaca que, após a família deixar o local, um atrás do outro, após a decadência da mineração na região, a personagem não esmorece, passando a estabelecer novos vínculos. “Depois que as pessoas vão indo embora, ela vai se conectando com outros seres. É muito engraçado quando o empreiteiro chega e pergunta se Kaylane matou tudo aquilo (apontando para uma parede recheada de insetos presos por alfinetes) e ela responde que ‘não matou ninguém”. Para ela, os bichos são gente, seus companheiros”, comenta Bárbara.
Essa maneira como Kaylane enxerga o mundo está relacionada, segundo a intérprete de 39 anos, a uma percepção indígena. “Quando eu li a ‘Queda do Céu’, do Davi Kopenawa, eu tive muito essa dimensão. O rio tem seus espíritos e eles estão vivos. É um rio vivo, um ser vivo. Não é somente água. O Davi fala disso, pois ele, como xamã (dos Yanomami), quando sonhava, conversava com esses espíritos de cada lugar. A Kaylane é isso, sempre conversando com tudo aquilo. Ela não estava sozinha. Não tinha esse lugar da solidão, na verdade”.
Para Bárbara, com um filme tão cheio de minúcias, a preparação não poderia se limitar à sala de ensaios. “O filme foi sendo construído à medida que a gente foi à campo. Até parecia que a gente era antropólogo, mas não deixa de ser verdade. Para entender a personagem de fato só seria possível quando estivesse nos lugares. Quando cheguei em Paracatu de Baixo (distrito de Mariana atingido pelo rompimento da barragem do Fundão, em 2015), para fazer o caminho da lama, lá entendi muitas coisas que não tinha entendido”, ressalta.
Esse entendimento só se deu após ela ver uma escola totalmente soterrada de lama ou quando avistou “um grilo mutante”, com três patas e sem asas. Além de Mariana, onde parte das filmagens aconteceram, há também imagens de outro grande desastre ocorrido em Minas, com o rompimento da barragem do Feijão, em Brumadinho, em 2019. “A sacada do Marquinhos foi relacionar esse grande sistema político de exploração e de escassez com uma trama pessoal em que o abandono também acontece sistematicamente”, observa.
“O rio não é simplesmente uma água que passa”
Quando recebeu a notícia do rompimento da barragem em Mariana, Bárbara Colen lembra que não tinha a devida noção de que poderia haver um desastre ambiental tão forte a partir da extração de minério em Minas. “Para mim, o mais traumático foi sentir o quão vulnerável a gente estava, que a gente estava a mercê dos interesses de empresas e que ninguém estava nos protegendo a gente neste momento”, afirma.
“Se você pensar, é um evento – não vou chamar de tragédia porque tem culpados –, um crime ambiental, que acabou com o rio. O rio Doce morreu. O rio não é simplesmente uma água que passa. É também a cultura das pessoas que vivem em suas margens, moldada pela presença da pesca, das tradições”, registra. Para Bárbara, um dos achados de “O Silêncio das Ostras” é criar uma contraposição entre um sistema político-econômico e sua personagem.
“(Neste sistema) Só se pensa em pegar, retirar, explorar, consumir. E, quando aquilo não serve mais, você abandona e vai embora. Uma das grandes belezas da minha personagem é porque ela é o elemento de quem fica, de quem ama o lugar, de quem cuida e permanecer. Ela sabe que, para permanecer naquela cidade, com a família dela, terá que cuidar daquele entorno. E hoje estamos justamente num momento em que não se pensa em nutrir vínculos”, lamenta.