OURO PRETO - A crescente participação de mulheres atrás das câmeras de comédias nacionais, na última década, pode ser relacionada a uma redefinição do humor nas telas. “Por muito tempo, ele foi branco, masculino, cis, hetero e centrado e usou grupos minoritários como alvo”, observa Juliana Gusman, curadora, ao lado de Cléber Eduardo, da temática histórica da 20ª edição da Mostra de Cinema de Ouro Preto CineOP), que acontece na cidade histórica até segunda-feira (30). Com o tema “O Humor das Mulheres no Cinema Brasileiro”, o festival está atento a um movimento de diretoras que passaram a assinar os grandes sucessos de público no gênero comédia. “Hoje a gente tem uma exigência política de repensar o que vai ser o humor e qual vai ser o alvo dele. Se formos analisa-los, esses filmes têm uma sensibilidade para essas questões e tentam incorporar a figura da mulher empoderada, que trabalha e que vai encontrar vários dilemas”, assinala Juliana, nesta entrevista ao jornal O TEMPO.
Como surgiu esse interesse pelo humor feminino?
Eu tenho uma pesquisa sobre cinema feito por mulheres. Também estudei representação feminina no cinema em meu doutorado, especificamente as trabalhadoras sexuais. Além disso, tenho um projeto de crítica de cinema feminista que se chama “Sara y Rosa”, que pensa os cinemas feitos por mulheres nos países ibero-americanos. Faço parte ainda do grupo de pesquisas Poéticas Femininas, Políticas Feministas, da UFMG, que reúne várias pesquisadoras que estão pensando esse cinema autoral. A chave do humor foi uma coisa nova, proposta pelo Cleber (Eduardo, também curador da Mostra). Pensar o humor se revelou muito surpreendente, porque até mesmo filmes que eu já havia me deparado, mas em outros recortes, com outras perspectivas de encará-los e reivindica-los, como é o caso de “Os Homens que Eu Tive”, de Tereza Trautman, e “Das Tripas, Coração”, de Ana Carolina, que são filmes que estão nesse universo feminista – embora a Ana Carolina não gosta que a gente reivindique o filme dela neste lugar. Mas a gente está recolocando e repensando nesta conversa com outros filmes, criando uma outra narrativa para eles.
No catálogo vocês abrem um texto com uma frase de Dercy Gonçalves, umas das primeiras comediantes do cinema brasileiro, sobre o desprezo dos homens pelas atrizes que investem no gênero. Como se instalou esse preconceito?
O preconceito com o humor, para início de conversa, vem de muito tempo, desde as origens do teatro grego. A comédia era considerada um gênero menor porque sempre esteve muita atrelada ao popular. Tem um livro de Terry Eagleton (“Humor: O papel fundamental do riso na cultura”) que diz que o humor dos poderosos é aquele risinho de lado, em que você ainda está controlando esse corpo. Já a gargalhada é um descontrole do corpo e quem está no poder não se pode dar o luxo de ter, pois seria uma resposta física quase irracional e, por isso, menor. Esses corpos fora da ordem sempre foram alvos desse humor, como as pessoas marginalizadas, LGBT e com deficiência. Sempre foram corpos dos quais se ri. A gente pode pensar vários estereótipos, dentro da feminilidade, que têm a ver com um rebaixamento ainda maior de mulheres que estão fora de uma certa norma. O riso também vira um mecanismo de produção de uma abjeção. Embora seja um sucesso de público, a comédia no cinema é vista em certos circuitos de legitimação como algo menor, justamente por ser de grande público e ter essa comunicabilidade. Agora como agente produtor de comicidade, as mulheres enfrentam uma certa comicidade. A Dercy era possível porque ela claramente representava essa contravenção. A gente pode aceitar, mas rechaça, que é o conceito de abjeto. Ele faz parte, porque a gente precisa dele para aquilo que é o correto se confirmar. No caso das mulheres que estão pensando e provocando o riso autonomamente, assumindo o discurso, a repulsa é ainda maior.
Mesmo com consciência maior, ainda hoje são poucas as mulheres as atrizes que protagonizam uma comédia, como Ingrid Guimarães, Tatá Werneck, Mônica Martelli e Samantha Schmütz, não é verdade?
Aqui na curadoria a gente mapeou e depois teve um momento de colocar na planilha o primeiro filme de cada diretora e foi se desenhando um percurso de gerações, desde o pioneirismo na década de 1970, passando pela geração dos anos 80 e 90 que faziam coisas muito loucas no curta-metragem (mais tarde migrando para o longa na década seguinte). Aí a gente tem um corte muito evidente em 2013, quando algumas diretoras conseguiram acessar esse lugar da comédia de grande público e orçamento. São elas que irão movimentar esse star system de atrizes. É a partir daí que acontece a recorrência de algumas figuras, como a Tatá Werneck, a Ingrid (Guimarães), a Mônica (Martelli), a Talita Carauta... que são recorrentes no trabalho de três diretoras (Susana Garcia, Cris D'Amato e Julia Rezende) que conseguiram superar esse marco dos 500 mil espectadores. Se a gente olhar para esse lugar do cinema comercial teremos mais mulheres que romperam essa barreira, mas também há o humor das bordas, que a gente também buscou valorizar na curadoria. É uma produção independente com outros corpos, outros sujeitos, produzindo o riso em nosso tempo.
A gente pode dizer que há um humor masculino e outro feminino?
Então, a gente está trabalhando com a indefinição deste humor. Há um livro, "O Riso da Medusa", da Hélène Cixous, que é uma ensaísta francesa, em que ela tenta reivindicar uma escrita feminina. E ela fala, em determinado momento, que é impossível definir essa escrita. O que não significa que ela não exista. Qualquer tentativa de definir é uma tentativa de aprisionamento, de fechamento dos sentidos. Por isso buscamos reunir filmes muito diferentes entre si, justamente para apontar para esse heterogeneidade, para essa impossibilidade de fechar uma definição. O humor feminino é menos uma categoria fechada e mais um dispositivo de provocação para reunir uma série de filmes e pensá-los juntos. Da mesma forma, em relação ao humor masculino, se entendermos só como humor, talvez seja só um humor masculino que se colocou como dominante.
É interessante observar que vocês não alijaram o cinema mais comercial. Neste sentido, “Carlota Joaquina, Princesa do Brazil”, lançado há 30 anos, seria o primeiro dirigido por uma mulher?
“Carlota” é um filme que amo. Gostaríamos muito de poder exibí-lo na Mostra, mas ele está neste processo de restauro e não ficou pronto a tempo. Mas a importância dele é tão grande, como paradigma, que a gente o manteve no catálogo, num texto sobre a heterogeneidade dos filmes. Ele é muito sui generis, porque ele não teve um grande orçamento e só foi feito devido à coragem e à teimosia de Carla Camurati, que bateu de porta em porta pedindo patrocínio, tudo feito com bastante inventividade. O sucesso se deve também ao fato de a Carla ter sido meio visionária na hora de distribuir, de maneira totalmente independente. Por isso é um fenômeno. Nenhum outro filme conseguiu fazer o mesmo na história do cinema brasileiro. Os que feitos depois de 2013 partem de outra lógica de produção. A Carla foi a primeira a passar de 500 mil espectadores no gênero comédia. A Tizuka (Yamasaki) conseguiu com os filmes da Xuxa, mas a partir de outros gêneros.
A presença das mulheres nas comédias atuais é muito significativa. Em 18 anos, a Cris D’Amato fez 18 filmes, por exemplo. Pouquíssimos diretores conquistaram esse feito.
A Cris é uma fábrica de fazer filmes. É a cineasta brasileira que mais fez longas na história do cinema brasileiro. Essa presença das mulheres tem a ver com a busca de expansão de público. Existe uma politização da comédia que vai interferir até mesmo nestes filmes de grande público. Ela também não pode passar muito alheia das questões de nosso tempo, que estão redefinindo o que é humor, que, por muito tempo, foi branco, masculino, cis, hetero e centrado e que usou de alvo grupos minoritários. Hoje a gente tem uma exigência política de repensar o que vai ser o humor e qual vai ser o alvo dele. Se formos analisa-los, esses filmes têm uma sensibilidade para essas questões e tentam incorporar a figura da mulher empoderada, que trabalha e que vai encontrar vários dilemas. Com isso, a gente vai ter outras figuras surgindo, como ter duas mulheres protagonistas, como é o caso de “Minha Irmã e Eu”, da Susana Garcia, que está centrado na relação entre irmãs e não mais na coisa heteronormativa da comédia romântica. Tem esses pequenos deslocamentos e há um interesse comercial nisso.
A predominância das mulheres, aparentemente, é somente nas comédias por enquanto.
A comédia é a porta de entrada nesse cinema mais comercial. De 2013 para cá, são 13 filmes dirigidos por mulheres que vão ultrapassar a casa dos 500 mil, todos na comédia. Mas é importante dizer que são poucas mulheres fazendo muitos filmes. É uma abertura, mas ainda bem tímida, porque tem muito mais homens. De 530 filmes lançados entre 1970 e 2024 que superaram 500 mil espectadores, são apenas 23 dirigidos ou codirigidos por mulheres.
(*) O repórter viajou a convite da organização da Mostra de Cinema de Ouro Preto