OURO PRETO –“Para reconstruir, às vezes é preciso destruir, exterminar”, registra Clarissa Campolina, ao comentar o final de “Suçuarana”, que ela dirigiu ao lado de Sérgio Borges. Uma das atrações da 20ª Mostra de Cinema de Ouro Preto, o filme dá uma “solução” ortodoxa e, de certa forma, poética a uma história baseada em escravidão e extrativismo em Minas Gerais, que reflete justamente a região ouropretana, que não só serviu de locação como também teve participação no elenco de apoio.
“Essa região de Ouro Preto foi, de fato, uma inspiração pra gente. Toda a história da escravidão e do extrativismo, da violência do capital e de uma forma colonial de organizar o poder, foi uma inspiração para nós assim como as comunidades que resistem”, citando a Guarda de Moçambique como símbolo de resistência do povo negro e suas tradições. Integrantes desse grupo cultural e religioso atuam como moradores de uma aldeia que oferece um pouco de conforto à protagonista Dora.
Interpretada por Sinara Teles, Dora cai na estrada desde os primeiros minutos de “Suçuarana”. Ela sai em busca de um lugar desconhecido, chamado Vale do Suçuarana, a partir de uma fotografia deixada pela mãe. O encontro deste lugar pode representar a volta à terra natal e à família. Sozinha, levando uma vida muito simples, ela tem pequenos encontros reveladores em sua caminhada, mas não consegue se fixar em nenhum lugar devido à obstinação em achar o vale do título.
“A nossa identidade está ligada à terra. O não-estar no lugar em que você se constituiu é também muito violento – e isso reflete a violência do próprio extrativismo. A Dora tem essa busca, que pode ser por esse lugar utópico, mas ao mesmo tempo é a representação de uma busca dela própria, de sua própria identidade. Nesse sentido, após esse percurso e esse encontro com a comunidade, de alguma forma ela se aquieta”, destaca Clarissa, que amplia o entendimento sobre o percurso de Dora.
“Ela percebe que se encontrou, que a identidade dela está neste lugar de trânsito. Ela retorna para a estrada porque essa vida é a que pertence a ela. É também uma possibilidade de a gente ter e se satisfazer com outras vidas; não esta vida em que se está baseado”, salienta a diretora, fazendo uma ligação com o final. “É preciso destruir para que possa nascer algo novo. O filme vem um pouco com esse gesto, esse desejo, mas também sem apontar soluções. São questões muito complexas”, analisa.
Apesar de o longa trazer à mente narrativas da mitologia grega, especialmente ao sublinhar elementos fantásticos, a cineasta afirma que a construção da história foi “mais orgânica do que pensada”. Ela conta que o filme parte de uma inspiração do livro “A Fera na Selva”, de Henry James, que mostra um homem à espera de algo que irá acontecer em sua vida, enquanto uma mulher se apaixona por ele. O personagem não acredita nessa paixão até o momento em que ela morre, percebendo que perdeu o que estava esperando.
“Ele diz que, quando menos perceber, essa fera iria atacá-lo. De alguma forma, a personagem é a fera. Foi isso i que nos motivou a construir a Dora como fera. E por isso ela é também ligada ao cachorro. Fora das palavras, ela consegue se comunicar com ele”, explica Clarissa, ao falar da participação de Encrenca, um cão que surge por duas vezes no caminho da protagonista de “Suçuarana”, repentinamente salvando-a de sofrer uma violência que poderia pôr fim à busca.
“A gente pensou em ter um personagem, um animal, lançando um desafio de pensar a relação com Dora não como um humano olhando para um animal, mas como o próprio animal. Esse desejo dele de ou ir com ela ou de não ir com ela tem a ver não com a domesticação do animal, mas com o próprio desejo dele de sumir em algum momento e ela ficar procurando. Ele não é devoto. Não existe um dono. Ele é um ser livre, de alguma forma. Só que é um ser muito conectado com ela”, assinala.
“Ele (o cão) a guia ou a lembra de que o afeto existe, mas que ele não é ‘domesticável’. Esse aparecimento e desaparecimento, ligados a uma certa circularidade, estão refletindo questões da própria Dora”, adiciona Clarissa, que frisa a divisão em duas partes do filme. “Na primeira surgem os encontros, normalmente com mulheres. Elas representam diferentes situações de mundo, só que todas entendendo a opressão e a violência nesse lugar que está mais marginal, em que as pessoas estão quase se acotovelando uma nas outras, para sobreviver”, salienta.
Um dos grandes destaques do longa, que tem estreia prevista para setembro, é a atuação de Sinara Teles, que está à frente de uma companhia teatral com foco em peças comunitárias, a Cóccxis. “A gente não fez um teste, mas sim uma conversa. Entregamos o roteiro, pedimos para ler e comentar, fazer um estudo de personagem da Dora. Quando ela escreveu o texto, falou assim: ‘ao mesmo tempo que eu admiro, gostaria muito de me jogar, mas tenho medo, e acho que isso vai me ajudar a construir a personagem’”, recorda.
Como tem sido comum em sua trajetória nos cinemas, Clarissa divide a direção de “Suçuarana”. Seu parceiro agora é Sérgio Borges, com quem fundou a produtora Teia (hoje ela comanda a Anavilhana, ao lado de Marília Rocha e Luana Melgaço). Em produções premiadas como “Trecho” (2006) e “Girimunho” (2011), esteve ao lado de Helvécio Marins Jr. Com Luiz Pretti, lançou “Enquanto Estamos Aqui” (2019). “Eu me formei no cinema coletivo”, justifica a realizadora de 46 anos, formada em Comunicação Social pela UFMG.
“Quando a gente se junta e funda a Teia, lá nos idos de 2000, me ocupava muito de trabalhar com todas as pessoas. Cada um tinha uma identidade ali dentro, mas eu gostava – e ainda gosto – disso. Eu gosto de ser deslocada, de ter que repensar, argumentar e mudar. Esse lugar da hierarquia não está estanque, não é algo que eu quero explorar. Eu quero explorar a busca de uma linguagem, e nesse lugar que, às vezes, você terá que rebolar para defender. Isso faz com que o processo seja muito vivo”, avalia.
Entre os próximos projetos, estão um filme-ensaio “que tem relação com mineração também” e uma série sobre lutas coletivas. “Um sempre vai puxando o outro, mas com linguagens diferentes. Desde de ‘O Trecho’ há sempre uma pessoa à procura de sua identidade. Mesmo em ‘Canção ao Longe’, em que isso acontec dentro de uma mesma cidade, e ‘Girimunho’,com a Bastú se encontrando agora viúva. Talvez tenha aí uma questão que ainda não resolvi”, conclui Clarissa.
(*) O repórter viajou a convite da organização da Mostra de Cinema de Ouro Preto