Depois de 128 anos de história, a Academia Brasileira de Letras (ABL) acaba de eleger a primeira mulher negra para ocupar uma de suas 40 cadeiras. Ana Maria Gonçalves, autora do romance "Um Defeito de Cor", foi eleita na tarde desta quinta-feira (10/7) para a vaga antes ocupara pelo linguista Evanildo Bechara.

A escritora mineira de 54 anos foi a primeira a se inscrever para cadeira número 33 após a sessão da saudade de Bechara, no dia 27 de maio, um sinal de como a candidatura foi bem costurada dentro da ABL. Ela já largou na corrida como favorita.

A escritora levou 30 votos e bateu 12 concorrentes: Eliane Potiguara, Ruy Lobo, Wander Lourenço de Oliveira, José Antônio Hartmann, Remilson Candeia, João Calazans Filho, Célia Prado, Denilson Marques da Silva, Gilmar Cardoso, Roberto Numeriano, Aurea Domenech e Martinho de Melo.

A obra de Ana Maria é considerada um ponto de virada na literatura negra brasileira. "Um Defeito de Cor", publicado pela Record em 2006, foi um marco na elaboração da história da escravidão no país.

"Ela é uma das responsáveis, no Brasil, pelo encontro mais fértil entre as autoras negras e o gênero romance, que sempre foi altamente restrito", afirma a crítica literária Fernanda Miranda, que estudou em seu doutorado a maneira como a produção de romancistas negras se expandiu a partir do ano de publicação do livro seminal de Gonçalves.

O livro, segundo a crítica e professora da Universidade Federal da Bahia, "amplia nossa concepção de África como um território multifacetado, complexo, vibrante, porque é formulado pelo conflito e não pela idealização". Da mesma forma, o romance "traduz de forma exemplar" como o Brasil é um país que em constante movimento, misturando diferentes culturas.

O romance histórico, que já vendeu 180 mil exemplares e inspirou de exposições de arte a enredo de escola de samba, acompanha ao longo de 950 páginas a vida da narradora Kehinde, desde seu sequestro na África, passando pela escravização no Brasil, até a busca por seu filho perdido - a personagem tem traços inspirados na vida de Luiza Mahin, tida como mãe do advogado abolicionista Luiz Gama.

"É um acontecimento histórico", diz Fernanda Miranda. "A presença de autoras negras é uma realidade no sistema literário brasileiro. O mercado editorial já sabe, a universidade está aprendendo, a crítica literária tem se revelado menos cega do que já foi. Instituições tradicionais como a ABL demoram ainda mais tempo para perceber que a literatura é movimento, não algo estático. Elas são as grandes defensoras do cânone, que é sobretudo uma força de retenção do que já é".

A eleição, segundo ela, sinaliza um passo da ABL na direção de um entendimento menos restrito da literatura brasileira. "Ou seja, ganha mais a ABL. É ela que se enriquece ao trazer para seu convívio uma das autoras mais prestigiadas da língua portuguesa no século XXI".

É curioso que outra dessas autoras, hoje amplamente reconhecida como ponta de lança da literatura brasileira, foi preterida pela mesma academia há apenas sete anos.

Conceição Evaristo foi protagonista de uma rumorosa candidatura, em 2018, que postulava que ela passasse a ocupar o lugar de Nelson Pereira dos Santos. A escritora teve apenas um voto na ocasião, e o cineasta Cacá Diegues foi eleito - hoje a cadeira é ocupada pela jornalista Míriam Leitão, escolhida em abril.

A candidatura de Conceição, que partiu menos dela do que de um movimento público que incluiu um abaixo-assinado com milhares de assinaturas, foi percebida pela Academia como intimidação.

Para entrar na Academia, há a expectativa de que o postulante passe por um certo ritual, que envolve a manifestação do interesse na vaga, a aproximação dos acadêmicos e o envio de livros para a sede da Casa de Machado.

Se há sete anos a autora de "Ponciá Vicêncio" não cumpriu esses protocolos - e não poupou a ABL de críticas desde então -, agora se arma o terreno para uma possível nova candidatura, apadrinhada por membros mais recentes da instituição, após o pioneirismo ser quebrado por Ana Maria Gonçalves.

De fato, os últimos anos viram a Academia se engajar em uma série de ineditismos, como o de Ailton Krenak, primeira pessoa indígena empossada em uma cadeira, no ano passado.

O compositor Gilberto Gil se tornou o raro homem negro a fazer companhia ao imortal Domício Proença Filho na instituição fundada por Machado de Assis. E a presença de mulheres aumentou de leve com Míriam Leitão e Lilia Schwarcz - mas, com Ana Maria Gonçalves, elas são apenas 13 em toda a história da ABL.

E, por outro lado, houve a inclusão de acadêmicos do perfil masculino e branco que sempre foram regra, a exemplo do advogado José Roberto de Castro Neves e do escritor Edgard Telles Ribeiro, para citar alguns dos últimos meses.

"Essas recentes eleições têm cumprido um importante papel social ao reacenderem um debate público mais amplo sobre a histórica falta de representatividade de mulheres, negros e indígenas em espaços de poder, suscitado justamente pela candidatura de Conceição Evaristo", diz a professora Michele Asmar Fanini, que pesquisa a instituição pelo recorte de gênero e escreveu "Fardos e Fardões".

O momento, diz ela, traz oportunidade de refletir sobre a "lógica arbitrária e parcial" do cânone literário brasileiro até aqui e "identificar os mecanismos de exclusão que nele operam, fruto de uma engenhosa e intrincada construção social".

Fernanda Miranda, que é autora de "Silêncios Prescritos", sobre a história da autoria de mulheres negras, diz estar mais numa posição de observação cautelosa do que de pura celebração.

"É importante estarmos alertas para não confundir um ato de auto-resgate de uma instituição tida como falida por muitos com um ato de reconhecimento verdadeiro. Foi Conceição Evaristo quem disse, o importante não é ser o primeiro ou a primeira, o importante é abrir caminhos. Vamos observar os próximos passos para saber se Ana Maria e Krenak vão figurar como elementos únicos, como símbolos de ausências, ou se a ABL está apontando para novos contornos".