Houve uma época em que a MGM era essencialmente uma empresa de entretenimento. Hoje, nas mãos da Amazon, o estúdio é um bom exemplo da aproximação visceral entre Hollywood e o Vale do Silício, ilustrando a importância cada vez maior de novas tecnologias no ciclo de vida de um filme.
Não à toa, a inteligência artificial se alastrou pela indústria cinematográfica. Enquanto muitos se preocupavam com seu uso em roteiros e na substituição de atores, dois principais motes das greves que paralisaram Hollywood há dois anos, grandes estúdios concentravam esforços na pós-produção.
Os sindicatos de ambos os grupos conseguiram barrar os estúdios de escrever roteiros com robôs ou de clonar atores sem o seu consentimento - embora haja uma brecha para que produções sejam povoadas por figurantes sintéticos. Outras categorias, com menos força política, porém, ficaram descobertas.
Hoje, a nata de Hollywood normalizou a aplicação da IA para ajustar efeitos especiais. Seu uso também vem sendo experimentado na hora de desenhar artes conceituais de sets e figurinos, na mixagem de som e na criação de storyboards - sequência de ilustrações que ajudam a guiar uma história que ainda será filmada.
Já há até debates sobre a aplicação da tecnologia para adaptar filmes e séries para determinado público, depois de prontos, em questão de horas. Pense numa trama com uma cena apimentada, mas que pode ser remontada para ganhar uma classificação indicativa mais baixa e ser exibida na televisão aberta. Ou numa sequência entre personagens gays, excluídos de uma versão lançada em países do Oriente Médio sem prejudicar o andamento da história.
"É um facilitador para a censura. A IA não vai mudar a tônica da história, mas vai maquiar, deixar mais superficial", diz Marco Aurélio Casson, professor de animação e cinema da Faap e que atualmente desenvolve um jogo com auxílio da tecnologia.
Ele percebeu que muitos personagens pertencentes a grupos minorizados, em games recentes, vêm passando por um processo de assepsia e homogeneização, a fim de preencher um certo tipo de cota, sem necessariamente dar profundidade a temas LGBTQIA+, entre outros. "A IA atua aí, suprindo a necessidade de um resultado rápido, quase imediato, a partir de um banco de referências limitado."
Para Casson, o debate sobre IA é complexo porque, por um lado, é inegável que existe um cerceamento criativo e uma precarização do trabalho. Por outro, ela acelera e automatiza processos, permitindo que esforços se concentrem nas partes menos mecânicas da produção de um filme ou jogo, e democratiza o acesso a ferramentas para criação de uma obra artística.
"Eu não vejo a IA de forma muito diferente do que outros terremotos do passado. Quando surgiram as técnicas de motion capture [processo em que um personagem é animado a partir da captura dos movimentos de um ator], havia esse receio, e eu não vi nenhuma vaga de animador ser perdida por causa disso", afirma o professor.
Nos últimos meses, James Cameron, diretor de "Avatar" e "Titanic", e Darren Aronofsky, de "Cisne Negro", deram passos grandes em direção ao uso de IA. O primeiro entrou para o conselho da Stability AI e o segundo vai produzir curtas-metragens com a DeepMind, do Google.
"Eu passei a minha carreira buscando tecnologias emergentes para testar os limites do que é possível ao contar histórias", disse Cameron num comunicado enviado à imprensa. "A intersecção entre IA e CGI [imagens geradas por computador] é a próxima onda, e vai permitir que artistas contem histórias de maneiras nunca imaginadas."
A Lionsgate, por sua vez, tem feito negócios com a Runway, empresa que teve acesso ao acervo da produtora, que inclui franquias como "Jogos Vorazes", "Crepúsculo" e "John Wick", para treinar seu modelo de geração de imagens. Antes disso, ela foi processada por um coletivo de artistas por abastecer seu robô com imagens protegidas por direitos autorais. O processo segue na Justiça.
Um dos contratos entre Lionsgate e Runway incluiu o desenvolvimento de um trailer de um filme que nem estava em produção, a partir de um roteiro, para que a ideia fosse exibida num festival de cinema. Assim, o debate sobre o uso de IA não se resume a cortes de tempo e orçamento, mas abarca ainda processos e tarefas que não existiriam sem a tecnologia.
Por enquanto, não há indícios concretos do fechamento de vagas em sets de filmagem ou ilhas de edição por causa desta nova realidade. O que acontece com frequência, vêm relatando trabalhadores do setor em redes sociais e entrevistas, é o uso de IA como suporte ao trabalho humano.
Ilustrador em Hollywood com passagem por franquias como "Matrix" e "Transformers", Reid Southen tem causado barulho no X, antigo Twitter, com publicações sobre o tema. Ele realizou uma pesquisa informal pela plataforma com 800 profissionais da área. Quase metade respondeu que já tinha sido orientada a retocar imagens feitas por IA ou usá-las como referência em seus trabalhos.
Em outras publicações, ele compara frames de filmes feitos por profissionais de arte e efeitos especiais, como ele, a imagens geradas por inteligências como a Midjourney. Os resultados escancaram infrações de direitos autorais, tanto que Disney e Universal entraram na Justiça contra a plataforma, que consideram "um poço sem fundo de plágio", evidenciando a linha tênue sobre a qual estúdios vêm se equilibrando.
Na última corrida pelo Oscar de melhor filme, "O Brutalista", distribuído pela mesma Universal, gerou polêmica por usar IA para ajustar o sotaque de seus atores e gerar imagens conceituais de prédios brutalistas, mais tarde redesenhados por humanos.
"Emilia Pérez" também entrou na mira por aperfeiçoar a fala de suas duas protagonistas - mexicanas no roteiro, mas espanhola e americana no elenco. Já "Duna: Parte Dois" pôde colorir os olhos de alguns personagens de maneira automatizada. Nestes casos todos, o termo "inteligência artificial" foi evitado em entrevistas e materiais de divulgação.
"Há muitas situações [na indústria] em que se usa o termo 'machine learning' ou qualquer outro e, na verdade, é tudo IA", disse a atriz Natasha Lyonne à revista americana Vulture, na inauguração do estúdio Asteria Film Co., que ela fundou com o namorado, o empresário Bryn Mooser, e que diz ser o primeiro em Hollywood a usar IA de forma ética. "É melhor sujar logo as mãos do que fingir que nada está acontecendo."
A Asteria tem como objetivo, dizem seus fundadores, servir ainda de relações públicas da IA, ajudar a apaziguar os ânimos e pôr artistas para comandar as máquinas, não bilionários da indústria de tecnologia. Um de seus projetos envolveu encomendar 60 desenhos a um ilustrador. Eles foram usados para treinar um software que, uma vez capaz de replicar seu estilo, pôde gerar centenas de novas imagens e variações para um videoclipe.
No Brasil, apesar do atraso, a história não é muito diferente. No mês retrasado, o país ganhou seu primeiro estúdio especializado em pós-produção com IA. No Rio de Janeiro, o NKanda 360 pretende melhorar a qualidade de finalização de filmes, séries e comerciais produzidos aqui. Seu primeiro projeto, "Amantes", está sendo coproduzido pela Colômbia.
"O processo deve ser apoiado pela IA, mas não substituído por ela. É uma nova forma de expressão, que está aí para expandir, não para substituir", diz Carien Bastos, que fundou a casa ao lado de Fernanda Thurann, atriz e produtora da Brisa Filmes.
Para elas, a IA pode ajudar o audiovisual brasileiro a se desenvolver em áreas em que, historicamente, apresenta defasagens, como na mixagem de som, e a expandir o escopo de sua produção, abraçando gêneros em que há pouca tradição por limitações técnicas e orçamentárias, como ficção científica e fantasia.
"Imagina o custo de fazer um incêndio com efeitos práticos. Há um número grande de pessoas envolvidas, bombeiros, paramédicos, aparato de proteção. Fora os riscos. Para uma cena como essa, de um minuto e meio, já gastamos US$ 40 mil. Com a IA esse valor cai, talvez, para uns US$ 5.000", diz Thurann. "É uma tecnologia que permite que a criatividade voe mais alto, principalmente porque no Brasil trabalhamos com orçamentos enxutos."
Mas além de questões éticas, legais e do medo de greves, outro entrave para a adoção em larga escala, aqui e lá fora, é a qualidade técnica. As ferramentas atuais ainda não entregam imagens com o mesmo apuro técnico que a inteligência humana, embora a tecnologia avance a passos largos.
No mesmo artigo da revista Vulture já citado, um especialista de efeitos especiais que não quis ser identificado comparou a experiência de ver uma cena gerada com IA à degustação de um vinho - só vai perceber as diferenças na qualidade quem é um verdadeiro apreciador de cinema.