Desvio, desenvoltura, desvelo. Desvelar, segundo os dicionários, também quer dizer velar; ou ainda, agir com diligência, empenhar-se. Ou ainda mais, desvelo: ato ou efeito de desvelar(-se), grande cuidado ou preocupação em relação a um objeto, uma situação, um ser. Vigilância. Pois sim.

“'Desvelamento' é um livro de fotografias e textos sobre minhas memórias de férias passadas na antiga fazenda da família, localizada em Santa Rita do Sapucaí, no sul de Minas Gerais. Hoje abandonada, a casa ainda guarda vestígios do passado. Os objetos deixados no local marcam hábitos e crenças de pessoas que lá viveram. Gravuras desbotadas pelo tempo, um oratório na parede, chapéus de palha na soleira da porta, panelas e talheres na cozinha, lençóis puídos - objetos que guardam a fuligem do tempo e apontam para uma cultura particular”, diz Dúnya Azevedo, que lança nesta quinta-feira o livro "Desvelamento", em BH.

Capa do livro "Desvelamento", de Dúnya Azevedo. Foto: Arquivo Pessoal

Segundo Dúnya, as redescobertas fazem parte dessa trajetória que levou à concepção do livro. “Após um longo período sem frequentar a casa que um dia foi a fazenda de minha avó materna, decidi redescobrir aquele lugar que marcou minha infância. A primeira visita foi em 2017 e, sempre que posso, volto a percorrer os espaços da velha casa abandonada. Assim, fui com minha câmera e fotografei tudo que vi. Fotografar e escrever sobre meu encontro com o lugar, uma forma de dar nova vida ao que um dia foi”, explica a autora.

Parece que algo de precioso está para acontecer – e acontece – em cada foto do livro, algo que se esconde e se mostra ao mesmo tempo, um algo que cada “leitor” descobre à sua maneira. O livro de Dúnya “exige” do leitor-observador calma, paciência, e entrega. O que foi, ela parece dizer, ainda é, mas de modo diverso. Sem pausas, a memória dança num resgate de memórias submersas.

No livro, as fotografias meio que sugerem que devemos – ou podemos – olhar, não para o futuro (mas também para ele), mas para o passado com esperança. As fotos do livro nada fixam, mas permanecem firmes, elas exalam, cada uma a seu modo, uma personalidade forte, todas elas marcadas de sentido e, acima de tudo, sentimento.

Pode parecer óbvio, mas não é. As fotos interagem com o silêncio, mas sem afrontar, sempre com uma delicadeza abrupta, num vai e vem de sombras e cores estranhas repletas de sentidos que se espraiam lentamente, com a pressa de um colibri, ou, ainda, com a pressa calma das coisas supostamente desimportantes para o mundo contemporâneo. Como as saudades, as memórias e, principalmente, as coisas do afeto.

“A fazenda é uma construção de mais de 100 anos. Muitas gerações passaram por aquele lugar. Ali estão os vestígios de um passado que está em processo de apagamento. Ao longo do tempo, alguns objetos que encontrei no local desapareceram e outros permaneceram intocados. Fotografá-los foi a forma que encontrei de conservá-los comigo, de mantê-los vivos. Algumas tentativas de manter a casa de pé foram implementadas por uma pessoa da família, mas o abandono deixa suas marcas, e eu percebia que as paredes e os objetos se deterioravam a cada nova visita, o que me estimulava a fotografar mais e mais”, confessa Dúnya.

Dúnya tem o talento necessário para simplesmente olhar. As fotos do livro não são eficazes, pois estão protegidas por uma bruma, uma névoa que sugere silêncios, mas para muito além do óbvio.  Como quem medita, Dúnya acende uma vela no escuro (a própria foto revelada). Para que o céu desabe, para que as memórias fiquem.

“Como um livro de memórias, este projeto está ligado às minhas ancestralidades, múltiplas vozes que constituem uma história íntima e que é também coletiva, já que se refere a um universo que atravessa a história de muitos. Trata-se de uma narrativa composta de fotos dos ambientes do interior da casa, dos objetos lá encontrados e do espaço externo da antiga fazenda que, no projeto gráfico, dialogam com outras imagens e fotos de álbuns de família daqueles tempos em que a casa era habitada. O texto que atravessa as imagens está ligado às minhas lembranças que surgem nos momentos das visitas à casa”, argumenta a professora.

“Este projeto traz questões que ultrapassam minha história pessoal e pretende provocar uma reflexão sobre nossas histórias, nossas perdas, as relações que estabelecemos com o ambiente doméstico, com os objetos do passado e com as fotografias de família. Afinal, é a partir da memória individual, mas também da memória social que nos identificamos e nos posicionamos no mundo. 'Desvelamento' é, em certa medida, uma reflexão sobre a temporalidade das coisas e dos lugares, a memória e o esquecimento, a vida e a morte. Talvez possa ser definido como uma poética da ruína, uma narrativa que se situa na tensão entre passado, presente e futuro. É também a possibilidade de contarmos nossas pequenas histórias a partir da potência daquilo que resta.

Professora universitária, Dúnya Azevedo é doutora na área de Comunicação Social (UFMG), mestre em Design pela Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI/UERJ). Atualmente atua como fotógrafa e designer gráfica. Seu trabalho está focado na relação entre fotografia, memória e documento.

Serviço

Lançamento do livro "Desvelamento", de Dúnya Azevedo

Nesta quinta-feira, 3 de julho, das 19h às 21h, na livraria Asa de Papel Café e Arte (rua Piauí, 631, Santa Efigênia)

A obra conta com 80 páginas e será vendida por R$ 80