Nos dias que antecedem uma estreia teatral ou operística no Palácio das Artes, é comum que o ar do Centro Técnico de Produção e Formação (CTPF) seja tomado por um cheiro que combina o floral típico dos sabonetes Lux brancos e um leve aroma alcoólico. A mistura, aos desavisados, pode até lembrar um coquetel, mas, não, não há festa ali: ocorre que, para higienizar o figurino, retirando o suor e o mau cheiro antes das peças voltarem ao palco, a solução é borrifar vodca pura no tecido. “A gente aplica, põe no sol e o odor some”, comenta Cláudia Malta, diretora artística da Fundação Clóvis Salgado (FCS), que geriu esse centro de produção, armazenamento e conservação por cinco anos.

O método, curioso como tantos que habitam o discreto prédio da avenida dos Andradas, é apenas um entre dezenas de cuidados diários exigidos para manter vivo um acervo com cerca de 15 mil peças usadas em espetáculos dos corpos artísticos do Palácio das Artes desde a década de 1970.

O CTPF ocupa três pavimentos de um edifício sem placa, vizinho à Serraria Souza Pinto, nos arredores do Parque Municipal. No primeiro andar, reservado ao setor de lavanderia, duas técnicas especializadas aplicam protocolos rígidos de higienização: nem tudo pode molhar, muito menos encarar máquina. “Veludo, bordado, itens com plumas, com retalhos de tecidos finos… Só na base da vodca”, explica Cláudia, apontando para um vestido que já desfilou em peças como “La Traviata” e “Viúva Alegre”. Quando o tecido permite, usa-se apenas sabonete branco. Sabonete, não sabão. E, geralmente, da marca popular Lux.

Cláudia Malta, da FCS, no Centro Técnico de Produção e Formação (CTPF) | Crédito: Fred Magno/O Tempo

Além das peças delicadas, há ainda aquelas que dão trabalho extra por possuírem alguma característica cuja preservação não está prevista em nenhum manual. “Para a ópera ‘Aleijadinho’ (realizada em 2022), usamos peças tingidas com café. Não dava para lavar, porque, se não, perdia essa característica. Por outro lado, o cheiro atraia insetos, exigindo vigilância constante”, recorda a figurinista Marcela Mor, responsável por vestir os intérpretes da ópera “Cavalleria Rusticana”, em cartaz a partir de 6 de agosto no Grande Teatro Palácio das Artes.

Já o segundo andar abriga a maior parte do acervo acumulado ao longo de quase 55 anos: no lugar, estão a maioria das cerca de 350 araras, que, em média, carregam 50 peças por unidade. Tudo está catalogado em um sistema on-line criado em 2019 pela parceira Appa, que assumiu a gestão do espaço. “Se você procura a ‘arara 5, corredor A’, encontra o figurino exato”, garante Cláudia. Larissa Martins, coordenadora-geral de projetos Appa em atendimento a FCS, detalha que, além do que está visível, algumas caixas distribuídas no lugar revelam surpresas. “Você abre uma e tem cem pares de luvas, dezenas de presilhas de cabelo… O que se vê pendurado é a menor parte”, situa.

Por fim, o terceiro pavimento mistura conservação e memória com criação e futuro: nele, além de parte do acervo, funcionam um espaço de cortes, acabamentos e de prova das peças, ostentando um espelho de 2 por 2 metros, máquinas de costura e prateleiras com itens variados de costura. É lá que costureiras, bordadeiras e aderecistas transformam desenho em roupa de cena. “Dependendo da peça, se tudo for criado do zero, são em média três meses de trabalho e muita movimentação”, cita Larissa, acrescentando que o lugar recebe alunos dos Cursos Regulares do Centro de Formação Artística e Tecnológica (Cefart). “É muito interessante porque eles criam as peças dos seus espetáculos reutilizando o material criado por outras turmas”, complementa.

Figurinista Marcela Mor faz croqui de figurino para a ópera 'Cavalleria Rusticana' | Crédito: Fred Magno/O Tempo

Equipe enxuta

Hoje, a equipe fixa desse centro de produção, armazenamento e conservação é enxuta: seis profissionais, sendo uma gestora, três técnicas de acervo e duas de conservação. Para grandes montagens, contrata-se pessoal extra. “É uma mão de obra muito específica. Não basta ‘uma senhora que costura no bairro’; ela precisa saber cortar, bordar, envelhecer tecido”, observa a figurinista Marcela Mor, inteirando que a escassez preocupa. “Estamos precisando de cursos mais voltados para essa área”, reforça Janaína Mendes, coordenadora de projetos Appa do CTPF.

Este, aliás, é um dos principais gargalos para a manutenção a longo prazo dos trabalhos no CTPF. “Há escassez de contramestras, costureiras, aderecistas que dominem técnicas quase artesanais. A contramestra Taires, uma das últimas em Belo Horizonte, corta moldes com a segurança de quem converte desenho em volume tridimensional. Mas este é um saber que vai se perdendo”, lamenta Cláudia Malta.