BONITO - A partir da metade da exibição de "Kopenawa: Sonhar a Terra-Floresta", no Centro de Convenções de Bonito, um barulho estridente tomou conta da sala. Presente à sessão, o diretor Marco Altberg se levantou da poltrona e foi até a sala de projeção para descobrir a razão do som indevido, descobrindo que se tratava, na verdade, de um convidado inesperado: um grilo que não parava de cantar.

A sinfonia do inseto não passaria de um incômodo, dentro da programação do Bonito CineSur, festival que será realizado até sábado (2) na cidade sul-mato-grossense, se, minutos antes o filme de Altberg não tivesse mostrado um trecho do programa "Roda Vida", em 1998, quando o apresentador indagou ao entrevistado Davi Kopenawa se a razão de tanto inseto no estúdio se devia à presença dele. 

Vinte e sete anos depois, Altberg não descarta a possibilidade de a cigarra ter sido atraída pela luz das imagens do líder indígena, autor do livro "A Queda do Céu" ao lado de Bruce Albert. "Fiquei louco com aquele barulho, achando que era um defeito técnico. Mas era uma cigarra. Você vê o que é a força da Natureza e das conexões", diverte-se o realizador, que assina o filme ao lado de Tainá De Luccas.

Apesar de o filme contar com várias citações ao livro "A Queda do Céu", com trechos selecionados para estampar a defesa de Kopenawa sobre a importância de ouvir os ensinamentos dos indígenas para se preservar a Natureza e o mundo, narrados por nomes como Gilberto Gil, Camila Pitanga, Ailton Krenak e José Celso Martinez, o diretor frisa que é uma adaptação do best seller. 

"O livro já existia, mas quando a gente resolveu fazer o filme, logo antes da pandemia. O Aílton Krenak me apresentou à Tainá, uma jovem documentarista que havia uma entrevista de cerca de uma hora com o Davi. Quando eu vi, achei muito bacana e propus fazermos um filme sobre ele. Mas quando veio a pandemia, ficou uma situação difícil de ir lá  (na aldeia) entrevistar", registra.

A dupla partiu para uma "pesquisa gigante" em arquivos, reunindo imagens de Kopenawa desde jovem até os dias de hoje. Com o fim da pandemia,, Altberg e Tainá também puderam acompanhar de perto o líder indígena, registrando a participação dele no Carnaval de 2024, quando foi homenageado pela Salgueiro, e quando recebeu o título de doutor Honoris Causa, pela Universidade Federal de São Paulo.

Altberg destaca tem também "muito respiro" com imagens da Natureza, em cima da fala de Kopenawa, resultando em cenas poéticas. "O filme tenta trazer a personalidade e as mensagens dele. Davi é um xamã, habitando uma outra lógica de pensar, que é característico dos povos indígenas. E o interessante no filme é o fato de ser o olhar dele sobre a gente", assinala.

O diretor cita, para ilustrar esse olhar original de Kopenawa, a sequência em o líder questiona o motivo de os brancos deixarem seus "irmãos" dormirem na rua e passarem fome. "Isso é inconcebível para eles. As estruturas indígenas são extremamente comunitárias, na acepção mesmo da palavra. Não têm essa loucura do abandono, da falta de empatia. Se um não está bem, os outros também não estarão".

Durante a sessão em Bonito, a plateia caiu na gargalhada quando Ailton Krenak recorda um diálogo com o amigo ianomami, que faz uma série de perguntas sobre a natureza do branco. Após ouvir de Krenak que o branco "come tudo", num aspecto devastador, Kopenawa questiona onde então fariam suas necessidades. "Eles c... no mundo", responde o mineiro, membro da Academia Brasileira de Letras.

"O Krenak estudou na cidade. Então ele é o indígena que faz essa ponte, profundamente crítica, trazendo essa visão dos povos originários para a gente. Ele escreveu livros, hoje na Academia e ganhou reconhecimento. Hoje a coisa mudou e, aos poucos, vai se abrindo (o entendimento sobre os indígenas). O Krenak diz que há séculos que falam a mesma coisa, mas só agora se começa a ter uma ressonância", analisa.

Para Altberg, não existe nada mais fascinante que a cultura dos povos originários. "Como um indígena nu, na floresta, sobrevive na floresta? É uma tecnologia sofisticadíssima. Nós, brancos, não conseguiríamos sobreviver dois segundos. O que faço é isso: mostrar para o não-indígena a beleza e a importância", avalia o diretor, que tem no currículo filmes como "Sombras de Julho", lançado há 30 anos.

Protagonizado por Angelo Antonio e baseado em livro do mineiro Carlos Herculano Lopes, o filme foi feito primeiramente no formato minissérie, com apoio da TV Cultura, e depois ganhou a forma de longa, num período muito ruim do cinema brasileiro, quando buscava a retomada da produção após a extinção da Embrafilme no governo de Fernando Collor.

Um relançamento comemorativo da obra, assim como está sendo feito com "Carlota Joaquina, Princesa do Brazil", que também faz aniversário de 30 anos, não está em seus planos, até porque ele não se lembrava da data redonda. Não consigo advogar em causa própria. Alguém tem que fazer. Sou muito distraído. Se olhar para trás, minha filmografia é uma loucura. Eu mesmo me espanto", diverte-se Altberg.


(*) O repórter viajou a convite da organização do Bonito CineSur