Em cartaz no Belas Artes, o filme "Hot Milk" se debruça sobre os traumas e as dores que carregamos ao longo da vida, refletidos em nossas decisões (ou na falta delas). Para chegar a essa conclusão, o caminho seguido pela diretora estreante Rebecca Lenkiewicz (roteirista de "Ida" e "Desobediência") é tortuoso e misterioso.
A carga enigmática fica por conta de Sofia, uma bela jovem que acompanha a mãe em um tratamento na Espanha, na expectativa de que ela possa voltar a andar (a locomoção foi perdida repentinamente, quando a filha tinha quatro anos). Mais do que saber as razões da doença, também importante, o filme mira em Sofia.
A primeira sequência de "Hot Milk" a mostra atravessando uma praia, apressadamente. Pouco depois surge sem abrir a boca diante da mãe e do médico. Ela vira esse meteoro silencioso, prestes a entrar na atmosfera e se espatifar em algum lugar. Antes disso, ela percorre um universo muito próprio, recheado de simbolismo.
Essa situação é ilustrada por um vídeo que assiste no notebook, com mulheres balinesas em transe, relacionado à tese de doutorado. É mais ou menos assim que ela vive, num estado constante de suspensão, como se aquela vida não fosse a dela. Devido aos problemas de saúde da mãe, Sofia passa a orbitá-la indefinitivamente.
São dois movimentos realizados por ela na narrativa, um em torno da mãe e outro, cada vez mais intenso, em direção para fora desse looping. Um conflito que se reflete na sexualidade, na relação com o país espanhol e na própria identidade. O filme é um lento processo de descobrimento dessa personagem abafada pela mãe dominadora.
Adaptada do livro homônimo de Deborah Levy, a história põe Sofia num relacionamento com uma alemã, no qual, assim como a mãe, ela exibe uma posição de comando. Enquanto a namorada assume uma posição mais descompromissada, envolvendo-se paralelamente com homens, a recém-chegada exige exclusividade.
Por mais que tente se afastar do jeito opressor da mãe, Sofia carrega esses mesmos traços em sua personalidade. Sob o forte calor da região de Almería, a garota exibe seu corpo, como se a impossibilidade de dizer o que tanto lhe incomoda pudesse ser canalizado em expressões de desejo livre e ardente.
Por duas vezes, ela é ferida na praia por uma água-viva, chamada de "monstro" pela namorada. Como Sofia, o ser marinho é misterioso e belo, quase invisível por conta do seu corpo transparente, mas machuca quem se aproxima dele, provocando urticária. Ele tem luz própria, assim como a protagonista de "Hot Milk".
É um filme principalmente sobre mulheres presas a uma outra pessoa e a um determinado papel social. A cadeira de rodas que serve de refúgio para a mãe é a mesma que prende a filha a um mundo que já gostaria de ter abandonado. A narrativa compreende justamente esse momento de tensão, em que algo está prestes a explodir.
Neste drama psicológico, Rebecca opta por não facilitar o entendimento sobre o que se passa na cabeça de suas personagens, depositando no que não é dito. Com isso, a força dramática do longa se concentra em Emma Mackey, que se torna um vulcão inativo que, em condições adversas, dá claros sinais de uma iminente erupção.