Incapaz de tomar a coroa para si, Lady Macbeth passa toda a peça de William Shakespeare sussurrando delírios e tramoias nos ouvidos do marido, até que ambos mergulham numa espiral de loucura que torna esta uma das tragédias mais sangrentas do dramaturgo inglês.

Não é por trocar a Escócia do século XI pelo Brasil de 2025 que a versão de Fernando Coimbra para "Macbeth" fica mais leve. Dez séculos podem separar as tramas, mas a barbárie e a incivilidade também são dos elementos mais fortes de "Os Enforcados".

Retorno de Coimbra aos cinemas brasileiros, 11 anos depois do sucesso de "O Lobo Atrás da Porta", o filme estreia nesta semana após ter seu roteiro premiado em um laboratório de Sundance e ter exibições especiais no Festival de Toronto.

Ambição, corrupção e profecias regem "Os Enforcados" tanto quanto "Macbeth", mas com tons contemporâneos, claro, e um tempero brasileiro. O projeto surgiu da vontade de Coimbra de denunciar a criminalidade que corrói a sociedade carioca a partir do topo da pirâmide, não da base, como costuma ser o caso no audiovisual.

Sede de poder é mais uma vez o que move os protagonistas, Valério e Regina, interpretados por Irandhir Santos e Leandra Leal. Ele é um bicheiro que divide os negócios ilícitos com o tio. Ela fica em casa supervisionando a obra da mansão que herdaram, um "mausoléu" incrustado nos morros e mirando o azul do mar.

Uma disputa pelo controle do império do jogo do bicho e uma carta de tarô que enseja Regina a aproveitar as oportunidades que surgem - um aceno à profecia das bruxas de "Macbeth" -, porém, faz com que o par comece a mentir, subornar, matar e torturar todos em seu caminho.

"Quando falamos do crime nas bases, muitas vezes falamos de uma galera que não têm opção. São pessoas que são vítimas da pobreza, da miséria, que acontece muito por causa de uma elite que concentra renda e amplia o abismo social. Era nessas pessoas que eu estava interessado, nas dinâmicas de corrupção do país", diz Coimbra sobre a ideia, que surgiu ainda no período de finalização de "O Lobo Atrás da Porta", também estrelado por Leandra Leal.

De lá para cá, ele foi revisitando o roteiro, fazendo alterações, até enfim poder filmá-lo. O atraso foi em parte causado pela pandemia de Covid-19, mas majoritariamente por convites para dirigir no exterior, em séries como "Narcos" e "Perry Mason" e no filme "Castelo de Areia", com Nicholas Hoult.

"A essência continuou a mesma, a descida ao inferno do casal protagonista. Mas muita coisa mudou por causa de tudo o que eu vi acontecendo no Brasil, mesmo que estivesse longe. As coisas ficaram mais doidas com a ascensão da extrema direita. Vimos absurdos acontecendo e figuras como Bolsonaro e Sérgio Mouro surgindo. Então acabei fazendo um filme sobre o chamado 'cidadão de bem', que se popularizou no período".

A ideia do "cidadão de bem" é mencionada de forma direta no filme, num diálogo em que o bicheiro protagonista, sob os olhares atentos de um delegado da Polícia Federal, reclama da violência no Rio de Janeiro e diz que merece estar em segurança por pagar seus impostos - mas é ele próprio um dos motivadores da criminalidade, formando milícias, corrompendo policiais e banalizando atrocidades.

Coimbra viu no jogo do bicho, uma contravenção normalizada e que parece inocente, folclórica até, a oportunidade perfeita para contextualizar seu "Macbeth". E se a parte lúdica da obra de Shakespeare acontecia pelo sobrenatural, aqui são o tarô e o Carnaval que possibilitaram ao diretor "carregar nas tintas" - uma decisão que bebe do cinema coreano, que também satura seus tons para poder lidar com uma realidade que já é absurda por si só.

Assim, "Os Enforcados" tem cenas de violência bastante gráficas e diálogos cortantes, frutos também de toda a expertise que Coimbra reuniu trabalhando com diferentes gêneros lá fora, principalmente o policial, mas não só. É coisa de brasileiro, bater tudo no liquidificador e transformar em algo próprio, algo antropofágico, conta o diretor.

Além de Santos e Leandra, também estão no elenco Stepan Nercessian, que faz o tio bicheiro, deputado e dono de uma escola de samba, e Irene Ravache, a mãe da protagonista, uma cartomante que quer se dar bem em cima de quem der abertura. Completa o núcleo principal um personagem um tanto estranho - a casa onde o casal mora.

Sons de martelo e furadeira são onipresentes no filme, conforme a reforma da mansão avança. O barulho ajuda a criar um clima de caos, como se colaborasse para a loucura dos protagonistas, e o avanço das obras, que degrada o cenário aos poucos, reflete sua derrocada emocional.

Escrito com a colaboração da atriz Fernanda Torres, o roteiro ainda toma como referência outra obra de Shakespeare, "Hamlet". O protagonista também tem um pai morto em condições suspeitas - teria sido assassinado pelo próprio irmão, numa disputa por poder? -, e que lhe dispara mensagens de forma esotérica.

"Mas a inteligência não é o forte do Macbeth, como é o caso do Hamlet", diz Coimbra. "O Hamlet é vítima justamente por ter grande sensibilidade num mundo que é brutal, já Macbeth tem uma capacidade de se iludir muito grande. Tanto que é usado pela mulher, que tenta se realizar por meio dele. Um leva o outro a ler mal a realidade, mas eles têm um pacto, o casamento, que também é uma fantasia que não funciona".

O apego de Coimbra a Shakespeare pode ter raízes em suas origens no teatro. O diretor integrou o elenco do Oficina, sob a batuta de Zé Celso, por mais de uma década, e foi lá, conta, que aprendeu a dirigir atores. Entre os projetos futuros está justamente um documentário sobre o encenador e dramaturgo, morto há dois anos.

Coimbra registrou o casamento de Zé com o ator Marcelo Drummond e, um mês depois, seu velório. O material deve dar origem a um filme que, como "Os Enforcados", também falará de sucessão, já que a ideia não é contar sua trajetória, mas pensar sobre seus meses finais, a idade avançada e a transição que se desenhava nos bastidores do Oficina.

Mas é preciso, antes, criar certo distanciamento do material, já que Coimbra era amigo próximo de Zé Celso. Enquanto isso, ele encerra o ciclo de "Os Enforcados" e torce para que o bom momento do cinema nacional chame o público para as salas a partir desta quinta-feira.

"Os Enforcados"
Quando. Estreia nesta quinta (14/8), nos cinemas
Classificação. 18 anos
Elenco. Leandra Leal, Irandhir Santos e Irene Ravache
Produção. Brasil, 2024
Direção. Fernando Coimbra