No fim de 1976, Louise Margaret, a Lelete, era uma jovem funcionária da rádio Del Rey, em Belo Horizonte. De sua mesa ela viu surgir um homem esguio, cigarro na mão e cavanhaque marcando o rosto fino, emoldurado por cabelos pretos e encaracolados. Gonzaguinha estava na capital mineira para divulgar um projeto dedicado à obra de Pixinguinha. Horas depois, o músico foi jantar com seu grande amigo Fernando Brant e o empresário Pedro Paulo Machado de Souza. Lelete também estava na mesa. Ali nasceria uma amizade, que viraria amor e casamento poucos anos depois e traria Gonzaguinha de vez para a capital mineira.
Em BH, o compositor viveu seus últimos dez anos. Neste 29 de abril, completam-se três décadas da morte dele. O músico tinha apenas 45 anos quando bateu o Monza de frente com um caminhão em uma estrada do Paraná. Ele estava em turnê pelo Sul do país e viajava com dois empresários. Um deles também morreu. Gonzaguinha foi velado no Palácio das Artes e enterrado no Parque da Colina.
Figura ainda tão presente na música popular brasileira, tocado nas grandes rádios do país, homenageado por bloco de Carnaval da cidade que ele escolheu para viver – o Lindo Bloco do Amor – e relembrado hoje por aqueles que conviveram com ele em sua fase mineira, o cantor é personagem impossível de esquecer.
Quando Lelete e o músico começaram a se envolver, ela foi firme: de BH não sairia. “Ele foi muito insistente; quando tinha folga, vinha atrás de mim, ia na minha aula de inglês, no pré-vestibular. Não teve jeito, fomos nos envolvendo”, conta a empresária. O casamento aconteceu no fim de 1980. A Pampulha, onde Lelete havia morado na infância, foi a região escolhida para fixarem residência. Em julho de 1983, nasceu Mariana, única filha do casal e a quarta do artista, pai também de Daniel, Fernanda e Amora.
“Aqui ele encontrou a calma, já estava cansado do Rio de Janeiro. Ele curtiu muito a filha, teve convivência com pessoas queridas. Até os últimos anos de vida ele ficou mais quieto dentro de casa”, lembra Lelete.
“Grávido”, lançado em 1984, tem na capa Gonzaguinha e Mariana. É desse disco a canção “Lindo Lago do Amor”, sucesso cuja inspiração foi a lagoa da Pampulha. Por ali, Gonzaguinha adorava andar de bicicleta e pensar na vida. De tanto parar em frente à Toca da Raposa, o vascaíno adotou o Cruzeiro como seu segundo time. “O Que é, O que é?”, hit incontestável do disco “Caminhos do Coração” (1982), também foi escrita em BH. Onde quer que estivesse, o futebol fazia parte da vida do menino criado no Morro de São Carlos, no bairro do Estácio, fundamental reduto do samba carioca.
Paixão pelo futebol
Um dos passatempos prediletos de Gonzaguinha em Belo Horizonte, encontrar a turma de Fernando Brant (1946-2015) e Murilo Antunes às segundas-feiras, no bairro Renascença, para jogar futebol, era programa certo. As peladas terminavam invariavelmente na mesa do botequim. “Ele era bom de bola, mas não era melhor que eu”, brinca Antunes, poeta, compositor e parceiro de Lô Borges, Beto Guedes e Flávio Venturini. A Cervejaria Brasil, um dos mais tradicionais pontos boêmios da capital, era local de goles e longas conversas.
Em Minas, Gonzaguinha também exerceu sua militância política. Ele foi um dos articuladores dos comícios pelas Diretas Já, em 1983. “Organizamos comícios em Uberlândia, Montes Claros, Varginha e Belo Horizonte. E o Gonzaguinha lá, sempre no palco. Ele era muito atuante, ativista, e foi um ponta de lança na causa contra a ditadura”, comenta Antunes.
Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, filho de Luiz Gonzaga, era um homem de hábitos simples, avesso a estrelismos. Inteligente, dono de uma personalidade forte. Poeta, compositor e um dos nomes fundamentais do Clube da Esquina, Márcio Borges conheceu Gonzaguinha em 1967, no Rio de Janeiro, quando os então estudantes sem muito dinheiro no bolso se reuniam em um boteco apelidado de “Sachinha”, ao lado da boate Sacha’s, no boêmio bairro do Leme, para falar de política e música. Naquele ano, a dupla viu Milton Nascimento apresentar “Travessia” para um Maracanãzinho lotado. Era noite do tradicional Festival Internacional da Canção. “Ficamos muito emocionados, choramos pra caramba, nos abraçamos”, recorda.
Borges mantém vivas as lembranças de tardes de sinuca, almoços, piadas e papos sobre literatura na casa de Gonzaguinha. “Tínhamos uma amizade diferenciada porque eu admirava nele a mesma coisa que ele admirava em mim: o amor e o apreço pelos livros”.
Artista de poucas parcerias, Gonzaguinha geralmente escrevia letra e música sozinho, mas foi com um mineiro que ele fez uma dobradinha já no fim dos anos 80, como conta Tavinho Moura: “Ficamos muito amigos por causa do Fernando Brant, ele aparecia na minha casa de bicicleta, conversávamos muito. Um dia, na casa dele, falei sobre a ideia de fazer um auto de Natal em que o boi seria sequestrado pelo herói. O Natal seria diferente sem o boi no presépio. Ele fez a letra um tempo depois e cantou para mim ao telefone”. A faixa “Cadê o Boi?” aparece em “O Aventureiro de São Francisco”, disco que Tavinho lançou em 1994.
Como ele diz, Gonzaguinha é uma figura única na música brasileira, dono de uma maneira de compor muito pessoal. “As letras eram inteiramente intuitivas, verdadeiras. Ele fez grandes músicas que refletiam as condições das pessoas e do país. O amor que se cultiva a ele hoje é o mesmo que se cultivava quando ele estava na ativa”, pontua Tavinho. Para Márcio Borges, “as músicas do Gonzaguinha se inserem no mesmo patamar das canções do Clube da Esquina”.
Lelete nunca saiu de Belo Horizonte. São 30 anos de saudade. Hoje, ela fala do companheiro de uma década: pai e marido amoroso, artista dono de um trabalho poderoso, ele cuidava de todas as pessoas que estavam à sua volta com a maior leveza do mundo. “É o homem mais maravilhoso que conheci na minha vida. Nunca conheci ninguém como ele. Nem vou conhecer”, afirma Lelete.
Lançamento de clipe e homenagem
Um ano antes de falecer, Gonzaguinha compôs “Vestidinho de Festa” a pedido da cantora Hanna, que morava em Paris e naquele momento decidiu não lançá-la. Em 2001, uma década após a morte do artista, a maceioense radicada no Rio colocou a faixa no disco “Nós em Nós”. Até então inédita, a música não teve muito destaque. Para retomar a história de 30 anos, Hanna lançou, no início de março, o clipe da música feita exclusivamente para ela. O vídeo está disponível no canal da cantora no YouTube.
Nesta quinta-feira, às 19h30, Gonzaguinha será celebrado na live “Gonzaguinha, O Eterno Aprendiz - 30 Anos de Saudades”. Sem plateia, o show acontece no palco do Teatro Rival Refit, no Rio de Janeiro, e será transmitido ao vivo no canal do teatro no YouTube. O ator e cantor Rogério Silvestre comanda a apresentação, acompanhado de Rafael Toledo (violão e voz), Cacá Franklin (percussão), Dudu Dias (baixo), Paulo Bonfim (bateria), Wladimir Cabanas (voz), Valdeir Valença (voz) e Imyra Chalar (voz).
No repertório estão sucessos como “Explode Coração”, “Recado”, “Começaria Tudo Outra Vez”, “Sangrando”, “O Que É, O Que É?”, “Eu Apenas Queria Que Você Soubesse”, “Grito de Alerta”, “É”, “Diga lá, Coração”, “Espere Por Mim, Morena” e “Vamos à Luta”.