Dona de um rosto marcante e de uma beleza que impacta, com poderosos olhos azuis e traços angulosos, Maïwenn Le Besco, ou simplesmente Maïwenn, tornou-se conhecida do público brasileiro - ao menos do que acompanha com atenção as produções francesas que por aqui aportam - por meio de filmes como o necessário "Polisse", vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Cannes de 2011. Além de ter escrito e dirigido o drama, que aborda o cotidiano da Brigada de Proteção de Menores (BPM) da polícia de Paris, ela também atua nele, ao lado de outros grandes nomes do cinema daquele país, como Karin Viard. Trata-se, como a premissa sugere, de um filme denso e tenso - aliás, "Polisse" foi exibido nos cinemas do país, pode ainda ser visto nas plataformas de streaming e esteve recentemente disponível, gratuitamente, no Festival Varilux Em Casa, junto a outro filme dela, "Mon Roi", sobre uma relação abusiva.
E é a esse mesmo evento que Maïwenn, hoje com 44 anos, volta agora, com outro filme de mesmo calibre, "DNA". Semana passada, a belíssima atriz participou de um bate-papo com jornalistas brasileiros, ao qual o Magazine esteve presente. A conversa (com a atriz o tempo todo agitando seus cabelos de um lado para o outro) foi rápida - Maïween é bastante objetiva. Mas antes de seguir em frente, vale falar da obra em si, que traz, no elenco, uma lenda do cinema francês, Fanny Ardant, além do eterno-ator-sensação Louis Garrel, entre outros não menos importantes.
De início, somos apresentados a uma família cujas relações internas são permeadas por ruídos - muitos ruídos. Maïwenn é Neige, uma mulher divorciada e mãe de três crianças. A relação com sua mãe (Fanny Ardant) traz ranhuras, assim como a com seu pai, um eleitor de confesso Jean-Marie Le Pen. Esse detalhe é bastante importante: um dos expoentes máximos da extrema-direita da França, e, junto à filha, Marine Le Pen. Suas campanhas eleitorais foram baseadas na oposição à imigração sem controle para a França.
E, na trama, o avô de Neige é argelino - trocando em miúdos, não é um francês 'de souch'. Ainda na parte inicial do filme, vemos que o progenitor vive em um asilo, ainda que de maneira alguma abandonado. Com as memórias em convulsão devido ao Alzheimer, ele, porém, verte lágrimas diante, por exemplo, de algumas falas do neto, o que comprova que seu cérebro ainda é capaz de fazer conexões importantes. A morte súbita de Emir é o acontecimento sobre o qual gira o filme. Com a reunião da família para tratar as questões práticas que uma morte suscita - a escolha do caixão (e o alto preço dos caixões), a urna que vai conservar as cinzas, quem vai ficar com as cinzas em casa, quem vai ficar com qual objeto - novos conflitos eclodem, enquanto questões antigas também são revividas.
Em meio a todo o turbilhão, Neige aparece como uma figura altamente interessada em pesquisar sua ancestralidade, suas raízes argelinas - a ponto de fazer uma pesquisa genética, cujo resultado lhe reserva algumas surpresas. Embora trate de uma questão bem particular: a relação entre Argélia e França, o filme acaba, coerente com a máxima de Leon Tolstói (de ao falar de seu quintal estar falando do mundo) se conectando a todos os descendentes de imigrantes espalhados mundo afora - desnecessário dizer que o Brasil é pleno deles. Ao menos, àqueles que se preocupam em manter acesa a chama da gênese de uma família. Impossível, pois, não se identificar com Neige.
Na entrevista, Maïwenn ficou sobremaneira interessada quando os jornalistas brasileiros trouxeram à conferência (a conversa, claro, foi realizada em ambiente virtual) o nome de Karim Aïnouz, cineasta brasileiro de ascendência argelina, que também tem se dedicado a pesquisar suas origens: o nome por trás de obras-primas como "A Vida Invisível" é fruto da união de um engenheiro argelino (hoje residente em Paris) e de uma bioquímica cearense. O filme mais recente do Aïnouz é “Argelino por Acaso” ("Algerian by Accident"), nascido após uma viagem sua à Argélia. Interessadíssima, Maïwenn pediu que soletrassem o nome de Aïnouz a ela, que anotou com atenção. "Na verdade, tenho uma amiga que me disse: 'Você tem que ver esse filme!' Mas ainda não consegui, aliás, se alguém puder me enviar o link, adoraria vê-lo", solicitou.
Confira, a seguir, outros tópicos abordados na entrevista
Entrosamento do elenco de "DNA". Sugeri (aos atores) que atuassem de uma maneira mais natural possível, para mostrar os paradoxos que podem existir numa família, porque acredito que, isso, todos nós vivemons, as disfunções em famílias. E tive a sorte de contar com atores ótimos.
Presença do elemento humor na trama. Misturar drama e humor é uma estratégia de vida, não só de cinema nem de roteiro. É assim que eu amo viver, é assim que eu fujo de todas as etapas devastadoras que existem na vida: ter gente engraçada em torno. O humor é a única porta de saída, o que nos salva. Então, tento usar (este elemento) em todos os meus filmes, como faço na vida.
Sua relação com Argélia. Eu tenho uma paixão pela Argélia, é lá que me conecto com as minhas entranhas. É curioso, lá, tenho a impressão de estar em casa quando estou lá, mas me sinto estrangeira na Argelia. Já na França, não me sinto enstrangeira, mas não me sinto em casa. Nunca parei de ir visitar a Argélia, o único período em que não fui lá foi nos anos 90, por conta da guerra (a guerra civil travada entre o governo argelino e vários grupos de rebeldes islâmicos, que teve início em 1991, e cujo saldo de mortos é estimado entre 150 mil e 200 mil).
Diferença entre atuar em seus próprios filmes ou no de outros diretores. Na verdade, não há uma receita. Eu procuro receitas para evitar desgates, cansaço, mas não acho. Eu acredito que cada uma (dessas experiências) tem coisas boas e ruins. Acho que se eu atuasse só nos meus filmes, isso mostraria que talvez eu não esteja sendo desejada em outros, e talvez sofreria com isso. E se não interpretasse papéis nos meus filme, talvez eu perdesse algo da minha expressão, então, é importante para mim saber que posso fazer as duas (alternativas). Mas posso não atuar no meu próximo filme, não tem regra. O bom de atuar nos meus filmes é que não dependo do desejo dos outros.
O Festival Varilux segue até esta quinta-feira. Informações
http://http://variluxcinefrances.com/2020