Música

Alceu Valença lança álbum que traz duetos com Ivete Sangalo, Bethânia e Lenine

“Bicho Maluco Beleza – É Carnaval chega às plataformas nesta sexta (26) e presta homenagem à folia pernambucana

Por Raphael Vidigal Aroeira
Publicado em 26 de janeiro de 2024 | 06:30
 
 
 
normal

Enroscado em duas beldades de cair o queixo, o sujeito de estilo hippie com barba desgrenhada e corrente no pescoço puxava o Bloco do Urso Maluco no Largo do Amparo, em Olinda (PE).

Da varanda de sua casa, Alceu Valença fitou a orgia sem conseguir acreditar no que surgia diante de seus olhos. Inspirado pelo folião fantasiado de Raul Seixas – um velho artesão alagoano do Alto da Sé, “gente boa pra caramba” –, Alceu criou a canção que batiza o seu novo álbum. 

A faixa-título de “Bicho Maluco Beleza – É Carnaval”, disponível a partir desta sexta (26) em todas as plataformas digitais, passou por metamorfoses ao longo do tempo. Em 1992, ela foi lançada como marcha-junina no LP “7 Desejos”, antes de se transformar em bloco que, no ano passado, arrastou 600 mil pessoas, “um absurdo de gente”, pelas ruas do bairro Ibirapuera, em São Paulo.

Agora, ela virou um frevo para sacudir o corpo inteiro, num dueto do anfitrião com “a rainha dos trios elétricos”, Ivete Sangalo. “Se você pegar a marcha-junina ‘Olha pro Céu’, do Luiz Gonzaga, ela pode virar um frevo tranquilamente, porque é a mesma genética musical”, exemplifica Alceu.  

Duetos

O compositor segue bem acompanhado na continuidade do disco, pensado como “uma viagem cinematográfica”. “As canções têm uma ligação total umas com as outras, ouça dessa maneira que você vai pirar!”, incentiva Alceu, apegado a um conceito de narrativa que as mídias digitais parecem diluir cada vez mais, ante a possibilidade de o próprio ouvinte definir a ordem com que deseja apreciar as músicas e de misturar artistas e álbuns. Em “De Janeiro a Janeiro”, o músico recebe Maria Bethânia, que, em 1984, regravou a inebriante “Na Primeira Manhã”. 

“Sempre que a gente se encontrava, ela era muito agradável comigo. Quer dizer, no Rio ninguém vê ninguém. Mas, nesses prêmios de música brasileira, ela era de uma simpatia incrível. Só participa do disco quem tiver uma simpatia comigo, aí fica bonito”, define Alceu, que canta com o filho Juba, os conterrâneos Lenine e Almério, “a entidade” Lia de Itamaracá – a bordo de uma sequência de cirandas –, além dos imprescindíveis cúmplices de outros carnavais Elba Ramalho e Geraldo Azevedo, este último parceiro (com Zé Ramalho) em “Táxi Lunar”, que fecha a jornada.  

Inspiração

Alceu não esconde de ninguém as inspirações femininas das composições selecionadas. Em “Diabo Louro”, de J. Michiles, “uma moça linda” incendeia o coração do protagonista, enquanto “Caia por Cima de Mim” coloca em relevo a figura do anjo querubim, uma bailarina que se tornou musa do artista graças à fantasia angelical. O repertório não é inédito, mas surge renovado pela abordagem foliã, em sucessos que Alceu assina com Don Tronxo, Ascenso Ferreira e Carlos Fernando (1938-2013), para quem o lançamento é dedicado.

“Ele era meu amigo, meu irmão, e foi um visionário”, sustenta o entrevistado. Autor do hit “Banho de Cheiro”, consagrado na voz de Elba Ramalho, Carlos Fernando produziu, em 1979, o primeiro de uma série de seis LPs dedicados ao frevo, no projeto batizado de “Asas da América”, que reuniu Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Moraes Moreira, Chico Buarque, entre outros medalhões da MPB. Alceu, Elba e Geraldo Azevedo participaram de todas as edições. “Essa ideia do Carlos Fernando, lá atrás, foi o gatilho para eu chegar a este álbum de agora”, corrobora o músico.

Liberdade

Em 1972, Alceu colocou na praça o seu primeiro disco, dividido com Geraldo Azevedo. Os dois e Carlos Fernando chegaram a morar no mesmo apartamento no Rio de Janeiro, todos vindos de Pernambuco. Natural de Caruaru, Carlos era conhecido em Recife pelas colaborações musicais com Teca Calazans e Marcelo Melo, integrante do Quinteto Violado, que depois rumaram para a Europa. A agitada noite pernambucana propiciou o encontro da trupe com Alceu. “O Carlos já estava vendo tudinho dessa força do frevo, só que, na hora H, a gravadora não investia e a rádio só tocava música anglófona”, avalia o compositor, em crítica à língua inglesa. 

Nesse sentido, ele celebra as possibilidades abertas pela internet, que descentralizou o poder da indústria fonográfica. Ao conferir as quase 300 milhões de visualizações de seu clássico “La Belle de Jour” no YouTube, Alceu dispara: “Essa música não tocava nas rádios, que estavam mais interessadas em Beatles. Você pode pegar uma música linda dos Beatles que, em ritmo de frevo, não funciona, vai ficar frevo apus”, provoca, utilizando a expressão grega que significa, literalmente, “sem pé”, ou “sem sentido”. 

Alceu, porém, nunca abriu mão de sua liberdade. “Ninguém manda em mim. Faço se tiver inspiração e de acordo com minha vontade”. Em 1982, os executivos da multinacional Polygram implicaram com o número de oito faixas em “Cavalo de Pau”, que trazia “Morena Tropicana”, “Como Dois Animais” e “Pelas Ruas Que Andei”. Queriam doze, como de costume. Alceu bateu o pé. “Foi o meu disco que mais vendeu”, gaba-se. 

Origens 

Alceu Valença teve que se dependurar em uma cadeira para alcançar o microfone. Com apenas quatro anos de idade, ele participava de um festival para crianças no Cine Teatro Rex de sua infância, em São Bento do Una, onde nasceu, no interior de Pernambuco.

Ao interpretar “É Frevo, Meu Bem” no início da década de 1950, música de Capiba lançada naquele mesmo ano por Carmélia Alves, ele travou, pela primeira vez, contato direto com o gênero centenário, declarado Patrimônio Imaterial da Humanidade. 

Já em Recife, na porta da residência na rua Palmares, número 253, onde vivia com os pais, seus olhos faiscaram com a passagem de blocos que tocavam maracatu, frevo, ijexá, cirandas e caboclinhos, numa infinidade de gêneros que revelavam bem essa diversidade cultural brasileira para uma criança.

“Aquilo me comoveu muito, eu devia ter uns oito anos”, rememora. Alceu coloca na conta do ritmo frenético e sincopado do frevo a força do gênero. “A ‘metaleira’ bota pra quebrar e é irresistível cantar junto”, diz. 

Desabafo

As orquestras de frevo, com seus arranjos de sopros e metais, de fato se tornaram uma constante em comemorações momescas pelo país. “Aqui em Pernambuco somos responsáveis pela volta do frevo. O Carnaval estava por baixo e, de repente, criamos um evento chamado Marco Zero”. Alceu se refere à folia fora de época que virou febre, na famosa Praça Rio Branco, em Recife. “Ninguém acreditava e o negócio pipocou!”, comemora ele, que convida os descrentes a darem uma rápida espiada no YouTube, onde vídeos sobre a festa comprovam a sua fala entusiasmada. 

Discípulo incorrigível da celebração dionisíaca, Alceu garante: “O ser humano precisa de alegria”. E manda um recado, a seu modo, aos detratores de plantão. “O Brasil ainda não entendeu a capacidade da economia criativa, que gera bilhões de reais. Ao invés disso, ficam estigmatizando o artista. Nem preciso disso, tenho público para fazer festa fechada, de camarote, mas quero ir pra rua. Aí começam com esse papo de que está ‘mamando’ nas tetas do governo. Quem tá ‘mamando’ nessa história todinha são as redes hoteleiras, o comércio de bares, restaurantes, o pessoal que vende pipoca, refrigerante, sanduíche, todo mundo se beneficiando da alegria do Carnaval”, finaliza.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!