Arte à distância

Artistas na quarentena: Reiventando a roda no universo virtual

Em tempos de pandemia do novo coronavírus, artistas autorais buscam alternativas na web para entreter e levantar recursos

Por Patrícia Cassese
Publicado em 04 de maio de 2020 | 03:00
 
 
 
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Se a interação presencial dos artistas com o respeitável público está, por ora, suspensa, a tentativa de reinventar a roda, neste momento, é consenso, passa pelo universo virtual. E, se as lives foram o canal encontrado por muitos expoentes – dos medalhões da indústria fonográfica aos que labutam como formiguinhas na seara da arte autoral dita não comercial –, há um grupo significativo que ainda está tentando encontrar a melhor forma de lidar com esse hiato que, assim como foi abrupto, tem estimativa de término imprevisível. Estamos falando daquele contingente que dá vazão a seu viés artístico se apresentando em bares, restaurantes, praças de alimentação de shoppings ou eventos dos mais diversos. Aqueles que não têm grandes patrocinadores ou gravadoras/produtoras maior por trás.

“Sim, a quarentena nos afetou imediatamente”, reconhece o músico mineiro Fred Santos, de Conselheiro Lafaiete, que, há mais de 20 de seus 44 anos, tem como pilar de seu orçamento as apresentações nos bares da vida. “A verdade é que, independentemente do vírus, a estabilidade da vida de artista é sempre uma questão complicada, mas, no meu caso, há pelo menos 18 anos tenho vivido de música de uma forma tranquila”, conta ele, que, além de ter montado um show mais intimista (em formato voz e violão), integra bandas como a Lonely Hearts (repertório Beatles), Barão Urbano (homenagem aos grupos Legião Urbana e Barão Vermelho), Rock Santeiro e Carpiah. “Tenho um mercado (de contratantes) muito bom nas cidades vizinhas de Belo Horizonte”, ressalta Fred, que, até bem pouco tempo atrás, costumava agendar de 14 a 22 apresentações por mês.

Com a pandemia, claro, tudo mudou. “Apesar de nunca ter me faltado nada (para as contas), eu não tinha reservas. Então, no primeiro momento, de fato não sabia o que fazer”, assume. Veio a ideia de fazer um show virtual, no qual os internautas pagariam voluntariamente o cachê que julgassem justo. “Mas, verdade seja dita, o alcance dessa iniciativa seria limitado. A gente sabe que o que posta de vídeos não alcança todo o Brasil – na verdade, nem toda Minas Gerais. Então, a tendência é que quem fosse pagar uma vez (o cachê virtual) entendesse que já fez a sua parte, dificilmente pagaria de novo”, rememora.

Essa ideia chegou a passar pela mente do saxofonista Roberto Bittar, mas ele se deu conta de que, se o banco usado por quem transfere o valor do cachê for diferente daquele no qual o artista tem conta, há o risco de a tarifa bancária ser até mais alta que o valor pensado para ser repassado, o que desestimularia a ação. Não bastasse, ele também lembra a questão do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, o Ecad, instituição responsável pela cobrança de taxas relativas a direito autoral, para serem repassadas ao compositor da música. “No caso dos bares em que me apresento, eles mesmos já arcam com esse valor”, diz.

Como também tem pendor para o desenho, Fred Santos passou a aceitar encomendas de retratos – mas, ainda assim, não deu para repor a renda perdida. “A verdade é que a quarentena mesmo tem sido um desafio para nós”, admite. A luz no fim do túnel começou a vir com a ideia de serenatas virtuais, na qual compõe uma canção exclusiva para ser presenteada ao destinatário. “A sugestão veio de uma amiga que, de pronto, já encomendou uma para seu pai, que estava aniversariando”, conta.

A boa surpresa é que, após a entrega do presente, Fred recebeu uma chuva de outros pedidos. “São canções personalizadas, exclusivas. Claro, é outro desafio, pois tenho que compor”, diz ele, que, para anunciar o trabalhou, elaborou um clipe no qual, com seu violão, encaixou dezenas de nomes na melodia, passando a mensagem de que, sim, toda história de vida pode ser fonte inspiradora de uma bela canção.

O show tem que continuar

Fred Santos e Roberto Bittar não são os únicos que vêm tentando fazer com que o show possa continuar. Nesse time também estão Carlim, Edu Pio e Sheyla Barroso. Cada um no seu quadrado, esses artistas representam muitos outros que vêm cortando um dobrado para fazer a roda da cadeia produtiva girar. A dublê de atriz, dançarina e jornalista Sheyla Barroso foi outra que viu sua agenda minguar com a pandemia. Pior: ela, que, nos palcos, dá vida a personagens como a Fada Sininho, em produções da Cyntilante, se viu com um episódio de sinusite logo após a última apresentação, antes de as demais do semestre terem sido canceladas. “Com medo, fiquei trancada dentro de casa, em isolamento total, recebendo a comida pela porta”, rememora ela. Não era a Covid-19, mas, em meio à quarentena forçada, ela se viu imersa em conjecturas sobre o que poderia fazer.

De forma espontânea, ofereceu para fazer uma live para o Instagram da academia que frequenta. No caso, encarnando a personagem Bolacha Star, uma palhaça deliciosamente distraída e desajeitada. A ideia era oferecer uma distração para as crianças que estão em casa, uma preocupação que muitos pais e mães que frequentavam a mesma academia estavam compartilhando. A boa surpresa é que a live gerou um superengajamento, e, ontem, ela já fez outra por lá.

Cunhado de Sheyla, Edu Pio, 38, foi outro a encontrar no mundo virtual uma forma de dar vazão à sua arte. Professor de musicalização há quase 20 anos, há dois ele dá vida a Super Pamp, um super-herói belo-horizontino não dotado de dons extraordinários, como o de voar. Aliás, nem capa tem. Super Pamp se destaca por incentivar valores como o amor à natureza, aos animais, à cidade e ao próximo, sempre ressaltando sentimentos como empatia e respeito e tentando dar um basta a mazelas como o preconceito. “Na verdade, além da musicalização infantil, dou aulas virtuais de violão e guitarra. Mas a questão artística, o fazer shows, zerou”, lamenta ele.

Para não deixar o Super Pamp no estaleiro, Edu também pensou nas lives, tendo convidado Sheyla, ou melhor, Bolacha Star. “Mas é preciso dizer que não temos uma estrutura como a dos sertanejos (referindo-se ao fenômeno das lives dos artistas desse segmento, que atraem milhões de internautas e muitos patrocínios). Aqui, é outra realidade! Ainda não tenho retorno financeiro. Por outro lado, entendo que é um formato que veio para ficar, então, é bom ir se familiarizando”, entende Super Pamp, ou melhor, Edu.

Retorno financeiro aquém do necessário

Para Sheyla, o projeto ainda não rendeu o retorno necessário. Aliás, ela fez questão de revelar o saldo bancário atual, aos risos. Mas, sim, a atriz entende que está plantando uma sementinha. A prova é que já recebeu uma proposta para fazer uma live de aniversário virtual de um garoto que vai completar 6 anos. Vale dizer que mãe e filho já se tornaram os “melhores amigos de infância” de Sheyla. “A gente se fala todos os dias”, brinda a simpática atriz.

Com um filho pequeno (Benjamin, 8 meses), a mulher se desdobrando como enfermeira nesses tempos tão difíceis e ainda uma mãe idosa para cuidar, Edu diz que não dá para ficar parado. “Nós, artistas independentes, não estamos parados, chorando. A gente vai rebolando, levando a vida”, diz ele, de bom humor. O saxofonista Roberto Bittar resolveu aproveitar os tempos de quarentena para tocar o seu saxofone do terraço de sua casa, no bairro Renascença. Como já é conhecido nas cercanias, nas poucas vezes em que sai às ruas (para ir, por exemplo, à padaria), recebe congratulações pela iniciativa. “Geralmente, toco no período da tarde, das 15 às 18h. Já que sei que, depois desse horário, as pessoas gostam de assistir a novelas, fazer outras atividades”, explica. Detalhe: desde que passou a ficar mais recluso, Roberto já aprendeu cerca de 50 músicas para acrescentar a seu repertório, para quando o pesadelo passar. “É uma ação que faço até para não ficar deprimido”, diz.

Ideias que pipocam

Carlim Oliveira, também músico, até tocava na noite belo-horizontina (antes da pandemia, claro). Mas a fonte principal de seus rendimentos sempre veio das inúmeras festas as quais se incumbia de embalar. Cantor, compositor, instrumentista (no caso, de cordas, como baixo, cavaquinho, viola, violão e guitarra), produtor, arranjador e dono de um pequeno estúdio no bairro Sagrada Família, ele, vale dizer, já tinha três grandes eventos agendados para o mês quando veio o isolamento social e, com ele, os inevitáveis cancelamentos.

“Veja, sou uma pessoa muito equilibrada, sempre fiz questão de ter uma reserva (de dinheiro), e, por isso, ainda está dando para segurar – esta é a sétima semana em que estou sem fazer shows. Por outro lado, estou muito preocupado, porque sei de muitos amigos músicos que não têm uma estrutura financeira para aguentar esse período. Tanto que já estamos vendo alguns movimentos para angariar ajuda ou mesmo cestas básicas”, diz, citando movimentos lançados por iniciativas como o Nos Bares da Vida e o SindiMusi-MG. Roberto Bittar entende que a questão demanda um debate urgente e lança ideias, como uma isenção temporária da cobrança dos direitos autorais para os músicos da noite, de modo que possam sobreviver. 

Carlim também se preocupou em como vai garantir algum fluxo de caixa para quando a sua reserva acabar. A ideia que lhe ocorreu foi uma serenata surpresa, criativamente batizada de "Serenata nas Alturas". Funcionaria assim: quem quer presentear uma pessoa, neste período em que o contato físico é inviável,  contrata o músico, que, devidamente paramentado (máscara, luvas, álcool em gel etc.), vai ao apartamento do homenageado. Lá, o contratante, discretamente, abre o interfone. Ao tocar da campainha, o homenageado vai atender e, daí, a surpresa. Carlim já vem colhendo os louros da iniciativa. “Você precisa ver a emoção das pessoas”, exulta ele, que estabeleceu um tempo de 30 minutos para a serenata, o que possibilita executar de seis a oito músicas, escolhidas de modo afinado ao gosto de quem vai receber a serenata. E, com toda certeza, no futuro, quando tudo isso passar, e o contato físico puder ser de novo exercitado, será um momento para ficar tatuado na memória.

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