Novo cenário

Aumento da oferta de cursos online democratizou temas antes restritos a nichos

Alunos e professores reconhecem desafios particulares do formato virtual ao mesmo tempo que celebram a pulverização de debates

Por Alex Bessas
Publicado em 22 de junho de 2021 | 03:00
 
 
 
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Depois de o primeiro caso de Covid-19 ser registrado oficialmente no Brasil, em fevereiro de 2020, não tardou para que os dois curtas-metragens em que a produtora audiovisual Amanda Drumont, 26, trabalhava desde o fim de 2019 fossem paralisados. “Os projetos estavam em fase de pré-produção quando a pandemia chegou. Imaginei que tudo fosse retornar em dois meses. Mas, até agora, não tenho uma data para a retomada”, lamenta a moradora de São Luís, no Maranhão, que tem vivido uma realidade comum a um sem-número de trabalhadores da cultura. Caso do cineasta, roteirista e pesquisador Vitor Medeiros. Atuando em um segmento solidamente afetado pela maior crise sanitária dos últimos cem anos, ele também viu, naquele primeiro momento, atividades serem suspensas ou até canceladas. 

“De início, nas primeiras semanas, havia a expectativa de um retorno relativamente rápido. Mas, aos poucos, com o passar das semanas, que viraram meses, a gente foi se dando conta da dimensão do problema”, diz, inteirando que, desde o primeiro instante, manteve diálogo intenso com a atriz e roteirista Bruna Trindade, com o realizador audiovisual e professor de cinema Jocimar Dias Júnior, com a roteirista Alice Name-Bomtempo e com o cineasta Caio Casagrande. O grupo compõe a Ritornelo, fundada em 2011 e que em 2014 se consolidou como um núcleo de criação audiovisual com sede no Rio de Janeiro. 

Foi nesse cenário um tanto hostil à atividade cultural, em que artistas se empenham em testar soluções para que consigam continuar a trabalhar apesar das adversidades impostas pelo coronavírus, que os caminhos de Amanda e dos integrantes do coletivo se cruzaram. O ponto de interseção, que diluiu os quase 3.000 km que separam a capital maranhense da capital fluminense, foram os cursos livres relacionados à arte e à cultura realizados virtualmente.  

Curiosamente, nem a produtora, nem os membros da Ritornelo consideravam a hipótese de realizar atividades formativas online até então. Uma realidade que se transformou desde março do ano passado. Foi quando plataformas digitais de ensino começaram a perceber um exponencial aumento na demanda e na oferta de cursos, que atraem tanto pela flexibilidade de tempo, um atributo importante para tempos em que as incertezas são sensíveis, quanto pela diversidade de temas. Com o movimento, vieram novas possibilidades de conexões, de complementação de renda e de democratização do acesso a discussões antes restritas a nichos muito específicos. Potencialidades que, evidentemente, não reduzem o tamanho do desafio enfrentado pelos agentes culturais no atual momento. 

Motivação

Sentindo-se tomada por uma sensação de incerteza sobre o futuro, Amanda Drumont tinha para si que, com projetos paralisados, deveria continuar a buscar estímulo criativo. “Eu vejo esse lugar da formação como um espaço de fomento das ideias. E essa era uma preocupação minha. Temia, por não realizar gravações na rua, por não ir para o set, perder ideias”, explica. E, para além de uma oportunidade de aprendizado, essas atividades se converteram em suporte para que a jovem produtora lidasse com a ansiedade – emoção que, entre maio, junho e julho do ano passado, se tornou mais presente na vida de pelo 80% dos brasileiros, conforme pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).  

“Eu sabia que ficar parada seria uma ideia ruim. E, além do mais, em minha formação, pela Escola de Cinema do Maranhão, foquei muito na parte de produção. Só que, de uns tempos pra cá, eu passei a sentir que precisava me aprofundar também em roteiro cinematográfico”, conta, revelando que, de início, teve receio de encarar as aulas online. “Era tudo muito novo, não sabia muito bem o que esperar”, reconhece. 

Enquanto isso, em conversas por videochamada, os membros da Ritornelo, já se dando conta de que o coronavírus não seria superado tão rapidamente, começavam a considerar a possibilidade de ofertar cursos virtuais. Projeto que eles levaram a cabo em meados do segundo semestre de 2020, quando o grupo começou a abrir turmas. À época, já era sensível o crescimento das buscas por atividades formativas na internet – tendência confirmada pelo relatório “A educação online avança: O que o mundo está aprendendo (em casa)”, da Udemy. Segundo a empresa, que funciona como um marketplace dedicado ao ensino na web, foi registrado um aumento de 425% nas inscrições de alunos e de 55% na criação de conteúdos de formação. 

Democratização e descentralização do conhecimento 

Não apenas uma possibilidade de complementação de renda, ofertar cursos na modalidade digital pareceu, aos membros da Ritornelo, uma alternativa para a democratização do conhecimento – um tema sensível para o coletivo, que sempre reserva bolsas para estudantes pertencentes a grupos minorizados. 

“Para mim, essa foi uma janela para trabalhar com um público maior temas que estavam muito limitados a alguns círculos, que eram acessados apenas por pessoas já iniciadas”, salienta Jocimar Dias. Um dos cursos ministrados por ele, o “Animações musicais fora do armário: Leituras queer de filmes da Disney”, é exemplo de como uma pesquisa, anteriormente tida como de interesse de um nicho, poderia alcançar um público mais amplo. “Embora demande muito trabalho de pesquisa, o formato digital oferece uma facilidade estrutural. Isso permite que a gente possa arriscar mais, trazendo temáticas com recortes mais específicos”, complementa Vitor Medeiros. 

Com uma proposta lúdica, a oficina “Corpos acústicos”, que pretendeu investigar os modos de convivência entre o corpo e a música, talvez seja o projeto que melhor tenha representesse fenômeno de democratização ao explicitar como os cursos poderiam ser abraçados por uma inesperada diversidade de pessoas. “Tivemos uma aluna de 10 anos, a aluna mais nova, e uma de 65, a mais velha. E, ao contrário do que eu imaginava, não teve ninguém do teatro. Fora duas pessoas da dança e uma da música, o restante estava ali pela experiência”, expõe a atriz Bruna Trindade. 

Fura bolha

A pesquisadora e crítica de cinema Kênia Freitas é outra testemunha de como tópicos, que aparentavam estar circunscritos a nichos, na verdade, despertavam o interesse de um grande volume de pessoas.

“Presencialmente, eu ministrava cursos sobre afrofuturismo e sobre crítica de cinema. Essas atividades ficaram paradas por um bom tempo. Então, percebendo esse movimento (de virtualização), decidi experimentar”, relata, lembrando que, em junho do ano passado, ela recebia seus primeiros alunos no formato da teleaprendizagem. “Depois, ministrei aulas em parceria com algumas entidades, como o Masp (Museu de Arte de São Paulo) e o FestCurtas de BH”, diz.

Kênia admite ter se surpreendido com a demanda pelos cursos que vem oferecendo. “Gosto de fechar turmas com até 40 pessoas. Mas, todas as vezes que abri inscrições, o número de interessados foi maior que o de vagas”, comenta, sinalizando que passou a interagir com estudantes que, até então, não estavam envolvidos com a temática do afrofuturismo. “É uma outra dinâmica, muito diferente do presencial, que costuma atrair um público que já está orbitando aquele universo. No virtual, essa busca fica mais disseminada”, analisa.

Novos horizontes

Ainda que considere um movimento que se dá tardiamente, Amanda Drumont celebra o que percebe como um fenômeno de descentralização do conhecimento. “Acho que esse é um movimento sem volta, que ganhou muita força. Há pouco tempo atrás, para fazer alguns dos cursos que estou fazendo, eu teria que me deslocar para o Sudeste, o que tornaria tudo mais complicado e difícil”, opina. 

“Sem dúvida, as fronteiras estão mais baixas. Tanto que consigo, hoje, fazer trocas efetivas, que seriam quase impossíveis anteriormente”, situa a produtora, contando que, no final do ano passado, ocupou vaga como jurada em um festival de cinema. “Eu era a única representante não sudestina no evento”, observa, dando conta de que há ainda um longo caminho para que essa democratização reverbere, efetivamente, em mais inclusão. “Mas, sim, vejo que barreiras foram rompidas. E comemoro que isso tenha acontecido”, finaliza.

Desafios

Há cerca de um ano, pela primeira vez, a Ritornelo abria inscrições para os cursos livres com foco, sobretudo, em cinema. No início, algumas atividades chegaram a ser canceladas porque os interessados eram tão poucos que não era viável fechar uma turma. Agora, contudo, o número de inscritos escalou para três ou quatro dígitos. Tanta gente que, por vezes, um mesmo curso precisa ser ministrado mais de uma vez, sempre com salas lotadas.

“Em todo esse tempo em que nos inserimos nesse espaço (de formação), houve e está havendo uma consolidação. Somos poucos e não temos uma grande estrutura por trás. É uma iniciativa independente e que está fazendo uma coisa completamente nova. Então, seguimos experimentando. É algo ainda bem tentativa e erro”, pondera Alice Name-Bomtempo, lembrando que a mudança de cenário foi abrupta. “Por mais que a gente tenha feito muitas reuniões, é claro que tudo foi muito rápido e inesperado”, diz.

Evidentemente, desafios particulares do universo virtual – dos mais prosaicos aos mais filosóficos – se impuseram nesse ínterim.

Bruna Trindade lembra, por exemplo, das dificuldades enfrentadas frente ao curso “Corpos Acústicos”. “O mais complicado foram as questões técnicas. Para começar, fizemos as atividades no verão. E tinha dias que estavam tão quentes que a mesa de som simplesmente não funcionava. Então, a gente tinha que fazer com tudo desplugado, o que prejudicava a apresentação dos dois músicos que participavam do projeto, no caso, a Bianca Godoi e o João Nhoque, da Codorna Records, de São Paulo”, detalha.

Conectar-se à rede. Outro entrave aos cursos online é a precariedade do acesso à internet em algumas regiões do país. “É uma coisa que pega muito, porque, para alguns, a conexão não é boa, o que acaba sendo um obstáculo”, aponta Kênia Freitas, doutora em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trata-se, pois, de um problema que compromete até mesmo o ideal de democratização do ensino por meio virtual, dado que, segundo o Estudo do Comitê Gestor da internet no Brasil, cerca de 47 milhões de brasileiros não têm acesso à web e, portanto, estão apartados das possibilidades de conhecimento na digitalidade.

A pesquisadora também lembra que a construção de laços sociais torna-se mais complicada nas novas dinâmicas. “Nos cursos presenciais, é comum que, aos poucos, uma convivência e uma comunhão mais evidente sejam construídas. Tem sempre os que ficam conversando depois da aula, os que vão juntos para o bar. São momentos de partilha fora da sala de aula, que corroboram para o fortalecimento de vínculos e para o desenvolvimento dos assuntos estudados. Não é algo que eu percebo no virtual. Pelo menos, não com a mesma potência”, opina.

Kênia ainda elenca outros elementos que dificultam a dinâmica da aprendizagem virtual. “Para começar, a gente perde aquele apelo da informalidade. Isto é, qualquer intervenção torna-se mais protocolar. Não dá para o aluno simplesmente fazer um comentário. Ele precisa ligar o microfone e pedir a palavra. Essa dinâmica dificulta contribuições mais, digamos, furtivas”, situa. Além disso, é um desafio para os professores ter um retorno espontâneo dos alunos. “Imagine que alguns estão com a câmera desligada. Não dá para saber se eles estão envolvidos com a aula ou não”, expõe.

Apesar das adversidades, Kênia acredita que, no futuro, um formato híbrido seria o ideal. “Eu quero muito voltar a fazer aulas presenciais. Mas também quero que os cursos online continuem a diminuir distâncias e a descentralizar o conhecimento”, opina.

Mini-entrevista

Heitor Augusto, curador e pesquisador de cinema

1. Como percebe essa migração de cursos antes presenciais para o online?

Essa passagem compulsória para o virtual, no meu caso, desperta sentimentos positivos e negativos.

Por um lado, é sensível que houve um aumento de procura, uma sede por esses conteúdos, que antes eram buscados por pessoas que estavam mais familiarizadas, para quem já era iniciado naquele assunto. Agora, pudemos descobrir que havia um interesse maior por diversas temáticas. Isso foi uma surpresa para mim.

Por outro, noto que essa dinâmica traz desafios importantes. E eu, como potencial aluno, como estudante, também procurei fazer alguma atividade formativa. Mas eu percebi que sou um tipo de estudante que tem dificuldade de lidar com esses conteúdos por tela. E não acredito que eu seja uma exceção.

2. Em termos de desafios, quais podem ser apontados como os principais?

Na minha experiência, a palavra desafio é quase um eufemismo. Primeiro que eu já sabia o tipo de professor que eu era em sala de aula. Eu percebo que, por exemplo, sou prolixo, e adoro digressão. E, no virtual, esse arco narrativo precisa ser encurtado. Então, a forma como me comporto precisa ser repensada o tempo inteiro. A experiência é parecida com a de traduzir. Isso porque, quando você traduz, você não traduz uma língua, mas uma cultura inteira. No caso do inglês para o português brasileiro, uma das diferenças é que temos predileção por frases longas, com muitas vírgulas, enquanto eles preferem ser mais diretos. Essa é uma adaptação que precisei recorrer. 

Um segundo desafio é: como interpretar as posturas corporais quando se está mediado por uma câmera? E, um terceiro, seria: Como podemos construir um espaço de formação em que as pessoas, especialmente aquelas que não estão habituadas a falar em espaços de formação, se sentem mais à vontade para se expressar? Aqui, vale lembrar que corpos subalternizados, das pessoas negras, dos LGBTs e das mulheres, por terem sido historicamente silenciados, tendem a pedir a palavra menos vezes.

Para o futuro, precisamos pensar que todos os eventos, daqui para frente, terão que pensar nessa descentralização do conteúdo. Por exemplo, não vejo como, a partir de agora, as mostras de cinema não se abrirem mais. Isso cria um peso econômico e, se a gente não falar disso, pensando na realidade desses cursos online, vai acontecer o que já acontece no ensino formal, de a conta ser paga apenas pelo professor.

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