Cenas da capital

Belo Horizonte: uma cidade de múltiplas sonoridades

Expressões musicais belo-horizontinas movimentam as diferentes regionais da cidade

Por Alex Bessas
Publicado em 09 de dezembro de 2023 | 04:00
 
 
 
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Espécie de cidade camaleoa na música, Belo Horizonte, que celebra 126 anos nesta terça-feira (12), já se notabilizou, em diferentes momentos de sua história, como um celeiro de diferentes movimentos musicais.

Nos anos 70, por exemplo, BH foi berço do Clube da Esquina, que congregou músicos, compositores e letristas como Milton Nascimento, Toninho Horta, Wagner Tiso, Lô Borges, Beto Guedes e Márcio Borges. Uma década depois, a cidade entrava na rota mundial do rock pesado e ganhava o título de “capital do metal” – ostentando ainda hoje, quase 40 anos após o surgimento das bandas Sepultura e Sarcófago. Já nos anos 90, a metrópole surfou nas ondas radiofônicas do pop rock com grupos como Patu Fu, Skank e Jota Quest.

Ao longo de todo esse tempo, obviamente, essas diversas cenas musicais belo-horizontinas conviveram com outras tantas manifestações que, por uma série de razões, não se tornaram assim tão proeminentes a ponto de serem reconhecidas nacionalmente, mas que sempre movimentaram o calendário cultural da cidade, revelando novos talentos.

A cena do hip hop

Uma das mais relevantes e influentes do país, a cena do hip hop em Belo Horizonte tem se consolidado nas últimas décadas como um espaço de resistência, criatividade e diversidade, revelando nomes como Djonga, Clara Lima, Flávio Renegado, Roger Deff, Oreia, FBC, Sidoka e Matéria Prima – artistas que expressam a força de uma produção musical de qualidade, originalidade e grande abrangência de estilos e vertentes, indo do gangsta rap ao rap alternativo, passando pelo trap e boom bap.

Trata-se de uma cena reconhecida, inclusive, por nomes de expressão nacional como o rapper paulista Criolo. “A relação que tenho (com a cena cultural da cidade) é de admiração total. A batalha de freestyle que tem aí, o campeonato nacional… E, antes disso, toda uma história de tantos e tantos anos até chegar nesse expoente, até chegar nessa posição de ser uma referência nacional, e eu acredito que seja uma referência internacional do que é a palavra. É uma celebração da palavra, é uma celebração do Brasil, uma celebração dessa nova literatura que se escreve a cada dia, com esse jeito, com esse sotaque… Minas Gerais abre seu coração e recebe MCs do Brasil todo e fomenta essa cultura. Então, meu respeito máximo”, disse o músico em uma entrevista a O TEMPO em julho deste ano, aludindo aos projetos liderados pelo coletivo Família de Rua, entre eles o Duelo de MCs, de abrangência nacional.

Além da música, aliás, o hip hop belo-horizontino se manifesta por meio de outras linguagens artísticas, como a dança, o grafite e a poesia. A cidade possui diversos grupos e coletivos de breakdance, que realizam apresentações, oficinas e competições. O grafite é outra forma de expressão muito presente na paisagem urbana de BH, com artistas que utilizam as paredes da cidade como suporte para suas obras, como Ataíde Miranda, Nilo Zack e Gud Assis. Por fim, a poesia também tem um papel importante nessa cena, com eventos que promovem a arte da palavra falada e rimada, como o Slam Clube da Luta, primeiro de Minas Gerais, e o Slam das Minas, composto exclusivamente por mulheres.

A cena do hip hop de BH ainda se caracteriza pela realização de eventos e festivais que movimentam a cultura local e nacional, como o Duelo de MCs, que acontece desde 2007, geralmente no Viaduto Santa Tereza, reunindo centenas de pessoas para assistir às batalhas de rimas improvisadas entre os MCs. Neste ano, a cidade recebeu também o Rap Game Festival, que aconteceu em março, no Mineirão, com 12 horas de música e mais de 25 atrações, além do Circuito Hip Hop Barreiro e do Belo Horizonte hip hop 40 anos.

A cena do samba

O samba, com suas raízes profundas na cultura brasileira, encontrou espaço para florescer em Belo Horizonte, sobretudo nos anos mais recentes. Geralmente realizadas em bares, praças, espaços culturais ou casas de shows, as rodas em BH reúnem músicos e apreciadores do gênero para tocar e cantar sambas tradicionais e contemporâneos em encontros marcados pela alegria, descontração e valorização da cultura popular.

Foi após o arrefecimento da pandemia da Covid-19 que novos territórios dedicados ao gênero foram sendo ocupados, caso do Bar do Cacá, no bairro São Paulo, zona Nordeste da capital, e do Três Pretos Bar, no Jardim Montanhês, na região Noroeste. Essa efervescência promove a sensação de que a capital mineira, que já acolheu nomes fundamentais do samba brasileiro – como Clara Nunes, que viu sua carreira artística ganhar impulso após se mudar para BH, e a contemporânea Aline Calixto, abençoada por Beth Carvalho, que há anos atrai multidões para o Bloco da Calixto, que tradicionalmente desfila no Carnaval belo-horizontino –, vem se abrindo mais e mais para o estilo e contribuindo para sua perenidade e relevância.

Com a experiência de quem atua há 25 anos nesse mercado, o produtor cultural Rodrigo Jorge Staff sustenta que a cena do samba em BH tem experimentado grande efervescência justamente nos últimos dois ou três anos. E essa vocação redescoberta da capital mineira já é reconhecida até mesmo por nomes fundamentais do partido alto, caso de Marcio Nascimento Kelly, gestor do Cacique de Ramos. “Aqui no Rio, sempre vimos São Paulo como um mercado para a nossa música. Mas, de uns anos para cá, Minas vem aparecendo fortemente como um mercado que abraça essa tradição musical”, reconhece.

Muito antes dessa popularização, contudo, diversos grupos dedicados ao samba mantiveram viva a vocação belo-horizontina para o partido alto. Um dos expoentes dessa cena é o grupo Magnatas do Samba, fundado há cerca de meio século com a proposta de resgatar o samba de raiz e homenagear os grandes mestres do gênero, como Cartola, Nelson Cavaquinho e Paulinho da Viola. Outra referência do samba na capital mineira é o Unidos do Samba Queixinho, formado inicialmente por um grupo de oito amigos no carnaval de 2009 e que, hoje, se apresenta como bloco de Carnaval e escola de samba de rua.

Essa cena também se destaca pela presença de mulheres, que ocupam espaços de protagonismo e resistência, tanto como compositoras, intérpretes, instrumentistas ou produtoras. Além das já citadas Clara Nunes e Aline Calixto, outras sambistas que representam a força feminina no cenário local são Dona Jandira, alagoana que iniciou sua carreira musical em BH, Cinara Ribeiro, que em 2015 lançou o álbum “O Samba Mandou Me Chamar”, e Adriana Araújo, artista nascida e criada na Pedreira Prado Lopes que vem se consolidando na cena das rodas da capital mineira.

A cena do funk

Um gênero musical que nasceu nas favelas do Rio de Janeiro na década de 1970 e que se espalhou pelo Brasil e pelo mundo, o funk se atualiza constantemente, ganhando novas formas e características. Em Belo Horizonte, o estilo é um fenômeno cultural que mobiliza milhares de pessoas, especialmente os jovens das periferias, que encontram no ritmo uma forma de expressão, diversão e afirmação.

Conhecida pela originalidade e por acolher grande diversidade de estilos e subgêneros – desde o funk ostentação até o funk consciente, passando pelo funk 150 BPM, entre outros –, a cena do funk em BH é impulsionada por uma rica produção de conteúdo local, com artistas independentes lançando músicas, videoclipes e remixes regularmente., ganhando cada vez mais espaço e alcance Alguns exemplos de funkeiros e funkeiras de BH , caso de que ganharam projeção nacional são MC Rick, MC L da Vinte, MC Delano, MC Nahara e Mac Júlia.

“Tem baile funk em BH desde que me entendo por gente. Eu cresci no bairro São Benedito, em Santa Luzia (na Região Metropolitana de Belo Horizonte) e tenho lembranças de festas que aconteciam lá e de outras na quadra do Vilarinho, em Venda Nova, ou no bairro Cachoeirinha, na região noroeste, por exemplo”, comenta Diego Fernandes, produtor da festa Revoada 31, focada no funk mineiro. “Hoje, temos bailes grandes, com propostas específicas, como o Baile do Popô ou os que acontecem na rua da Água, no Aglomerado da Serra, que acontece praticamente toda semana. Enfim, é só procurar que você vai encontrar”, garante, refletindo que, embora o público sustente a existência de um pujante ecossistema funkeiro, esse movimento ainda fica encerrado na bolha do underground.

Nacionalmente, Fernandes pontua que a produção belo-horizontina tem suas peculiaridades – “tanto de pista quanto de musicalidade”. “Em São Paulo tem estourado um funk mais agressivo, com ritmos mais acelerados, enquanto em BH temos o MTG (termo que faz referência à ideia de “montagens”), em que o beat é mais jogado, devagar e pesado, diferente também do funk carioca, que vem com outros marcadores”, sinaliza. Ele acrescenta que, na cena mineira, os DJs também vem ganhando cada vez mais projeção. “Eles já não são mais encarados como um suporte dos MCs, mas como criadores e artistas”, situa, citando o DJ WS da Igrejinha como exemplo desse fenômeno.

Fernandes reforça que, na capital mineira, bailes funk e festas temáticas, embora ainda sejam vistos de forma estigmatizada, proporcionam oportunidades de inclusão social e representatividade para artistas e moradores das áreas periféricas. Vale ressaltar que, em BH, muito além de um gênero musical, o funk tem um papel significativo na cultura local, influenciando o estilo de vida, a moda e a linguagem.

A cena clubber

A cena clubber em Belo Horizonte é conhecida por ter uma comunidade unida e conectada. Os frequentadores regulares desses eventos muitas vezes formam laços com outros entusiastas da música eletrônica, compartilhando interesses e conhecimentos musicais – e esse senso de comunidade é reforçado tanto pela frequência em eventos e festas similares quanto pelo acolhimento e inclusão das diversidades, proporcionando um espaço para pessoas de diversas origens, orientações sexuais e identidades gênero.

Outra característica marcante desse movimento diz respeito ao caráter exploratório de seus coletivos culturais, que realizam festas em regiões afastadas do eixo central da cidade. Um dos principais coletivos dedicados à música eletrônica de Belo Horizonte, a Masterplano, por exemplo, celebrou seu sétimo ano em atividade em uma festa gratuita realizada no Campo do Ferroviário, localizado no bairro Horto Florestal.

Essa itinerância, aliás, é um dos atrativos que seduzem frequentadores como a servidora pública Jane Dias de Souza, 64, que diz estar, desde os anos 80, investigando cada nova cena que surge no horizonte. “Antes, era sempre aquela coisa de clube fechado. A depender da década que estamos falando, eram boates, discotecas, danceterias… Eu estava acostumada com esse formato, que era a norma, e, quando surgiu essa ideia de festa de rua, foi algo que me entusiasmou muito. Por causa disso, já fui em lugares que talvez eu nunca conheceria”, reconhece.

Para Sosti Reis, membro do Masterplano e DJ residente da Mientras Dura, essa verve nômade está associada a um conjunto de fatores. “A gente estava em um cenário pós-junho de 2013, em que havia uma proliferação de ocupações culturais de espaços públicos da cidade, como aquelas que aconteceram na rua Aarão Reis (no baixo centro belo-horizontino) e na Funarte (Fundação Nacional de Artes, cuja sede foi ocupada, em 2016, em protesto pela dissolução do Ministério da Cultura pelo então presidente da República, Michel Temer)… Então, evidentemente, a gente é também fruto da vivência dessa cidade”, cita, lembrando, ainda, que o surgimento de algumas vertentes do gênero eletrônico está relacionado aos espaços e territórios em que essas músicas são projetadas.

“Quando a gente fala, por exemplo, do techno e do house music – que foram importantes para a cena de Detroit, nos Estados Unidos, e de Berlim, na Alemanha –, a gente está falando também de apropriação de espaços esvaziados, como descampados, espaços industriais e públicos que, teoricamente, não foram pensados para ser uma pista de dança, mas que podem ter seus usos reimaginados”, aponta.

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