“A normatividade é um deserto de tédio”. A frase, do artista plástico Pedro Pedro, sintetiza com precisão o que podemos classificar como ethos da cena eletrônica que habita a região metropolitana de Belo Horizonte. 

Seja pelo inquietante desejo de sair da caixinha das festas fechadas, propondo-se a investigar outras possibilidades de ocupação urbana, pela forma como acolhem as diversidades, abrindo espaço para protagonismos não hegemônicos, ou ainda pelo apelo estético, que depura experiências sonoras e flerta constantemente com a performance artística: a provocação do artista, um dos produtores e fundadores do Masterplano, funciona como guia, nos ajudando a compreender, por diferentes perspectivas, o movimento clubber mineiro – que, desde 2015, cresce, em volume e prestígio, e floresce, por meio de novos coletivos e iniciativas.

Mas até chegar ao atual cenário – em que há evidente consolidação dessa manifestação cultural como parte da identidade belo-horizontina e como referência nacional da modalidade –, há um pedaço de história que merece ser lembrado. 

No caso do Masterplano, que celebrou seu sétimo ano em atividade no último sábado (6), em uma festa gratuita realizada no Campo do Ferroviário, localizado no bairro Horto, na região Leste de BH e dedicado normalmente a partidas de futebol de várzea, a história toda começa em um grupo no Facebook. O grupo, aliás, já tinha o nome que batiza o coletivo e já reunia pessoas de diferentes lugares a fim de trocar referências musicais, além de debater outros assuntos. “A maioria dos participantes não se conhecia pessoalmente, e isso aconteceu quando o Vitor Lagoeiro (fundador e produtor do coletivo), como pessoa agregadora que é, propôs que a gente fizesse uma festa em uma casa em Ouro Preto. A gente começou a se organizar, fazer listinhas do que precisávamos levar, orçar uma van… Com todo esse movimento e a partir do momento que nos conhecemos, vimos que tínhamos muita coisa em comum, e essa identificação fez acordar em nós o desejo de fazer mais”, lembra Sosti Reis, que atua como produtor cultural e DJ, assinando o projeto artístico como Supololo. 

“Até aquela época, a gente sentia uma carência de eventos de música eletrônica em que nos sentíssemos confortáveis, pois esses ambientes eram geralmente normativos. A gente até chamava as festas que aconteciam em BH de ‘paredão de boys’, porque tanto o line-up quanto o público era composto por um mesmo perfil: basicamente homens brancos. E esse ambiente não era exatamente acolhedor para outros grupos, como mulheres, negros e pessoas LGBTQIAP+”, situa ele, um dos oito integrantes do coletivo Masterplano e para quem as festas privadas organizadas por Lagoeiro, apelidadas de “raves domésticas”, funcionaram como um protótipo de todo esse movimento. “Eram bem simples, mas já era um ambiente de experimentação”, cita. 

“Depois dessa festinha em Ouro Preto, a gente continuou conversando até que, espontaneamente, surgiu a ideia de realizar a primeira Masterplano pública, que aconteceu em 2015, no Família Miranda – um bar localizado na parte de baixo do Mercado Novo (na área central de BH), que infelizmente fechou com a pandemia, mas que foi um lugar importante na nossa história”, relata, lembrando que à época o coletivo reunia 20 integrantes. 

No mesmo período, meses antes, acontecia na extinta Benfeitoria – um galpão localizado na rua Sapucaí, no bairro Floresta, que recebia diversas atividades – a primeira edição de um evento organizado pela Mientras Dura, também um coletivo essencial para a consolidação da cena eletrônica na cidade. “A gente surge em um contexto de uma BH que já tinha um Carnaval de rua vibrante, que já possuía um ecossistema de bloquinhos itinerantes que falam muito dessa relação com a cidade e dessa ânsia de explorar novos horizontes urbanos”, comenta a produtora Yonanda Santos, uma das fundadoras e integrante da organização cultural. “Mas tínhamos uma inquietação, que era perceber que esse movimento estava restrito a apenas um período do ano, e isso nos mobilizou”, cita. 

Breno Barreto, também membro da Mientras Dura há sete anos, acrescenta que, na época, eles frequentavam eventos em São Paulo. “Chegamos a propor trazer para cá uma festa que acontecia lá, foi quando os organizadores sugeriram que a gente criasse um evento local, que eles eventualmente poderiam apoiar e participar”, recorda, sublinhando que aquele parecia marcar o momento do despertar da cena eletrônica em Minas.

De fato, mais um indício de que 2015 representou um “zeitgeist” desse movimento, após a realização das primeiras festas organizadas pela Mientras Dura e pelo Masterplano, acontecia a edição inaugural da 1Ø1Ø. Desde então o trio ganhou a companhia de outras diversas iniciativas – como a Avulsa, o Curral, a Horny, o Mokado, a Silicose e o Trembase – e não mais deixou de propor novas atividades e movimentar a cidade. Vieram então inúmeras outras festas abertas e fechadas, além de outras diversas iniciativas, como festivais, oficinas, ciclo de palestras, cineclubes e até bloquinhos de Carnaval. 

Pandemia e retomada 

Mas, então, diante dos desafios impostos pela Covid-19, “passamos a conviver com pouca ou nenhuma possibilidade de realização de atividades presenciais”. Nesse período, mesmo que a realização de festas em seu formato tradicional, isto é, em que há aglomerações embaladas por música, esses coletivos seguiram atuantes. “Fizemos eventos virtualmente, como a festa de aniversário do coletivo, a Masterplano em Chromakeyla Tour. Também fizemos um ciclo de conversas, o Masterplano em Quarentena, sobre temas importantes e que atravessam nossas ações. E, por fim, realizamos o nosso primeiro festival, o Clubbers da Esquina, que havia sido originalmente pensado para acontecer presencialmente, mas precisou ser reformulado para o modelo digital, contando com oficinas, shows e apresentações de DJs de toda a América Latina”, salienta Sosti Reis. 

Ainda que a comunidade da cena eletrônica seguisse unida e pulsante, “é claro que havia ainda um desejo de encontro presencial, um desejo que estava contingenciado”, comenta Sosti. Não por acaso, a primeira festa presencial organizada quase dois anos após esse hiato – realizada no Mineirão, na região da Pampulha, em dezembro de 2021 – teve ingressos esgotados antes mesmo do anúncio da programação. Situação igual ocorreu no último sábado (6), quando foi celebrado os sete anos do coletivo em uma festa gratuita, mas que exigia retirada antecipada de ingressos, e que reuniu 2.500 pessoas.

A retomada das atividades também tem significado entradas disputadas nas festas da Mientras Dura. “No mês passado fizemos uma edição aberta na avenida Aquiles Lobo, perto da rua Sapucaí. Segundo a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), 3.500 pessoas passaram por lá”, orgulha-se Yonanda, lembrando que um novo evento, desta vez pago, acontece no dia 19 de agosto, uma sexta-feira. “O local, que ainda é segredo, é inédito. O que posso adiantar é que será um espaço a céu aberto, em que teremos duas pistas e cuja lotação vai ser de cerca de 2.000 entradas”, avisa. 

Público cativo 

Atenta para não perder os concorridos ingressos, a servidora pública Jane Dias de Souza, 63, não quer deixar passar nenhuma atração. “Eu costumo dizer que atravesso as décadas. Estou desde os anos 80 na noite, investigando cada nova cena que surge no horizonte”, orgulha-se, detalhando que, nas primeiras vezes que foi a um evento eletrônico, nem sequer sabia muito bem do que se tratava. “Mas aquilo me emocionou. Eu chamava amigos para ir, mas, se não tivesse companhia, ia sozinha mesmo”, menciona. 

Além da música, a itinerância das festas é um dos atrativos que mais interessam a Jane. “Antes, era sempre aquela coisa de clube fechado. A depender da década que estamos falando, eram boates, discotecas, danceterias... Eu estava acostumada com esse formato, que era a norma, e, quando surgiu essa ideia de festa de rua, foi algo que me entusiasmou muito. Por causa disso, já fui em lugares que talvez eu nunca conheceria”, reconhece. 

Essa verve itinerante está associada a um conjunto de fatores, como expõe Sosti Reis, membro do Masterplano e DJ residente da Mientras Dura. “A gente estava em um cenário pós-junho de 2013, em que havia uma proliferação de ocupações culturais de espaços públicos da cidade, como aquelas que aconteceram na avenida Araão Reis (no baixo centro belo-horizontino) e na Funarte (Fundação Nacional de Artes, cuja sede foi ocupada, em 2016, em protesto pela dissolução do Ministério da Cultura pelo então presidente da República, Michel Temer)… Então, evidentemente, a gente é também fruto da vivência dessa cidade”, cita. 

Redescobrindo a cidade

A performer e pesquisadora do corpo Vina Jaguatirica, 28, também lembra que esse movimento exploratório dos coletivos eletrônicos acompanharam uma tendência que já influenciava a cartografia da capital mineira. Citando anotações da dissertação de mestrado de Thálita Motta Melo, apresentada ao programa de pós-graduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ela lembra, por exemplo, de outras manifestações que também trazem essa proposta, caso do Duelo de MCs, que desde 2007 ocorre na região central de BH, sobretudo em baixo do Viaduto Santa Tereza, e da Praia da Estação, um movimento que historicamente reivindica o direito à cidade e questiona o uso dos equipamentos urbanos e que costuma ser apontado como fundamental para o renascimento do Carnaval de rua na cidade.

A artista cita que, durante o tempo em que viveu na França, na Espanha e em Portugal, teve a oportunidade de se aproximar, ainda que sem se aprofundar, nas festas eletrônicas que despontavam nestes países. Mas foi em BH que Vina foi se ligar mais intimamente à cena. Hoje, ainda que não esteja mais tão entusiasmada, ela costuma propor durante essas festas performances que dialogam a experiência na pista, com a proposta da festa e com temáticas que orbitam o universo da política.

Aliás, Vina não cita as vivências que teve fora do Brasil à toa: mais que um componente local, essa verve exploratória é comum a movimentos ligados à música eletrônica de outros países. 

“Vale lembrar que o surgimento de algumas vertentes do gênero eletrônico está relacionado aos espaços e territórios em que essas músicas são projetadas. Quando a gente fala, por exemplo, do techno e do house music – que foram importantes para a cena de Detroit, nos Estados Unidos, e de Berlim, na Alemanha –, a gente está falando também de apropriação de espaços esvaziados, como descampados, espaços industriais e públicos que, teoricamente, não foram pensados para ser uma pista de dança, mas que podem ter seus usos reimaginados”, aponta Sosti.

Dissidentes.“Além disso, estamos pensando em uma lógica de apropriação de lugares a partir de uma música que não está no mainstream e de corpos dissidentes, que não estão conformados com a cisgeneridade e com a heteronormatividade. Então a caixa de som, a iluminação são pensadas para esses espaços e para a projeção desses corpos”, complementa o produtor.

Breno Barreto destaca que o acolhimento de grupo minorizados se deu de maneira muito espontânea e até óbvia. “O primeiro público da Mientras Dura eram pessoas do nosso círculo de amizade, que são, na maioria, mulheres, negros e pessoas LGBTQIAP+”, comenta. Mas, para além dessa movimentação natural, os coletivos se mobilizaram e adotaram uma série de medidas para tornar esse ambiente mais receptivo às diversas identidades de gênero e orientações sexuais.

“Desde o início do projeto, sempre foi importante para nós propor a criação de espaços para que, pelo menos por uma noite, as pessoas pudessem viver um microuniverso daquilo que gostaríamos que fosse o mundo sempre. Para isso, criamos políticas internas, como a de tolerância zero contra o assédio”, cita Yonanda Santos, informando que foi montada uma equipe de segurança alinhada à proposta e formada majoritariamente por mulheres. Liderada por Natália Lanças, ou simplesmente Naty, essa equipe é reconhecida nas festas da cena eletrônica. “Elas são ótimas, a gente sente que estão lá para nos proteger, e não para nos intimidar. Hoje, de tanto ir a esses eventos, até conheço algumas delas”, elogia Jane de Souza.

“Também criamos uma linha de WhatsApp para que possamos ser acionados diante de qualquer situação de perigo, envolvendo inclusive para redução de danos”, continua Yonanda, que finaliza citando uma última iniciativa: a lista T. “É uma forma de dar acesso a pessoas transexuais, travestis e não binárias”, indica. O expediente é adotado também por outros coletivos clubbers. “Mais do que qualquer outra ação, a gente sabe que o que garante a segurança e o acolhimento é justamente ter esse público massivamente na pista de dança, no front, no palco…”, avalia Barreto, sinalizando que a formação de uma comunidade ao longo desses sete anos também é um fator chave para que essa dinâmica funcione.

Apelo estético

A segurança e acolhimento que encontrou nesses espaços levou o bailarino Diogo Gonçalves, 28, a se entender também como performer. “Estes espaços são seguros para a livre expressão do corpo, onde as pessoas podem ser quem elas são. Locais assim abrem caminho para a livre expressão criativa, e isso foi muito potente para mim”, examina ele que começou a se identificar com a cena em 2015, quando essas festas começaram a surgir na cidade. “Eu sempre gostei muito de música eletônica, mas, em minha cidade de nascimento (Natal, no Rio Grande do Norte) e nas outras cidades em que morei esse movimento não era tão forte”, observa.

Ao longo desses sete anos, Gonçalves foi pouco a pouco “fluindo”, como ele mesmo descreve. “Foi onde comecei a me identificar com a performance artística”, declara, complementando que, em suas intervenções, busca referências sobretudo do movimento Club Kid – muito presente na cena clubber dos anos 90, que prosperou sobretudo em Nova York, apostando em um visual andrógeno, extravagante e criativo.

Efeito espelho. Vina Jaguatirica concorda. “Acho que, nesses lugares, as pessoas se percebem como corpo que possui potência, que não é só uma massa a ser moldada. Então a galera vai mesmo, se monta e isso tem a ver com uma atitude com a vida, que pode até não ser transgressora em outros espaços, mas que encontra lugar de vazão nessas festas”, pontua.

Simultaneamente, contudo, a artista e pesquisadora cita que pode haver um efeito espelho, e o que era para ser um movimento de livre expressão da individualidade se torna apenas em repetição de novos padrões. “Tem até um curta, o ‘As Clubbers Também Comem’, que reflete sobre esse fenômeno que leva a uma nova norma”, sinaliza. E daí, como já descreveu Pedro Pedro, o risco de se cair em um deserto de tédio.

OS CLUBBERS TAMBÉM COMEM ( The Clubbers' Wild Trip ) from Lufe Steffen on Vimeo.