“Nas margens da Baía de Guanabara, uma comunidade de jovens resgata e vivencia a cultura ballroom. Um retrato dos dramas, das performances de voguing e da arte do shade, 50 anos depois do seu início em Nova Iorque. Rio is burning!”. É esta a sinopse do documentário “Salão de Baile” (“This is Ballroom”), dirigido e roteirizado por Vitã e Juru, que acaba de ser selecionado para o Festival Internacional de Documentários de Copenhague – CPH:DOX, na Dinamarca, onde será apresentada pela primeira vez ao público. No evento, o filme integra a programação da mostra “Song & Vision”, dedicada a música e outras expressões artísticas, estreando no dia 14 de março e sendo reexibido nos dias 15, 19 e 23 do mesmo mês.

A produção – patrocinada pelo 2º Edital de Fomento ao Audiovisual da Prefeitura de Niterói - Fundação de Arte de Niterói (FAN), e coproduzida pela RioFilme, órgão da Secretaria de Cultura da Prefeitura do Rio – é apresentada pelos realizadores como um mergulho no universo efervescente de uma comunidade preta LGBTQIAPN+ do Rio de Janeiro, que segue a trilha da cultura ballroom criada em Nova York, em meados dos anos 70, e caracterizada por seus bailes (“balls”), onde os participantes, que pertencem a coletivos chamados de “houses”, que funcionam como famílias afetivas, competem em diferentes categorias, como voguing, runway, face e realness.

“A concepção (do projeto) tem muito a ver com esses encontros – no caso, meu com Juru e de nós dois com a cena ballroom”, resume Vitã, que prossegue com mais detalhes: “Eu ter começado a frequentar as ‘balls’ no início de 2019, onde encontrei o Juru, que já frequentava a cena desde 2017. E a gente não ia lá com a intenção de fazer cinema, mas para curtir, para ver os bailes, conhecer as pessoas”. Ocorre que, à medida que, despretensiosamente, mergulhava nesse universo, a dupla se sentia cada vez mais atraída por esse centro de gravidade.

“A Ballroom tem essa coisa muito instigante de você nunca entender completamente o que está acontecendo. Parece que, quanto mais você entende, mais perguntas aparecem – e  isso gerou uma atração, que me puxava para aquele lugar”, reconhece a diretora. “Então, o filme nasce, muito dessas vivências e desses encontros que a gente teve, no final de 2019, mesmo ano que comecei a frequentar a cena”, assinala, ponderando que houve, sim, um evento específico que funcionou como catalisador de todo esse processo. 

“Teve um dia em especial, em uma ‘ball’ que a gente estava, em que saímos falando que tínhamos que fazer algo, mesmo sem saber muito bem o quê e como, mas já com essa fagulha”, reconhece, lembrando que o baile em questão era pequeno, contava com a presença de crianças e, sobretudo, era demarcado por um contexto familiar, onde a ideia de comunidade estava posta e em relevo. “Também era um espaço em que a pegada racial aparecia com muita força, com um viés que pensava essa cultura dos orixás”, complementa. E esse conjunto de elementos convergiu para que a série de apresentações ganhasse mais potência. “Como era menor, as pessoas estavam mais próximas e, talvez também por isso, as performances foram muito intensas, fazendo crescer em nós o desejo de documentar esse momento, essa energia, esse ritual e esses encontros de pessoas que fazem o babado acontecer”, sublinha.

Vibração

Antes mesmo da ideia do filme, foi justamente toda essa potência envolvendo o momento do baile, sua energia, ritual e seus encontros, que seduziram Juru, fazendo que ele se envolvesse e se entregasse à cena. Formado em jornalismo, ele havia iniciado uma segunda graduação, em dança, em 2016. “Uma das pioneiras do movimento aqui no Rio, era minha colega de turma. Eu vi ela dançando vogue em uma aula de improvisação e reconheci o estilo, que eu já conhecia, mas não a fundo. Depois, descobri que ela dava aulas e comecei a frequentar”, lembra, pontuando que, à época, eram realizadas poucas balls na cidade. “Então, demorou até que eu pudesse ir em uma”, diz.

Público interage com performer em ball registrada no filme 'Casa de Baile'
Público interage com performer em ball registrada no filme 'Salão de Baile'

Essa primeira vez ocorreu no Museu de Arte do Rio (MAR), em um evento que contou com um show da cantora Linn da Quebrada. “Nesse primeiro dia, eu não vi nada. Eu vi só pedaços de braços, de gente. Mas a energia era tão intensa, tão forte, que eu me senti muito conectado. Por isso, mesmo que quase não conseguisse enxergar o que estava acontecendo, eu completava, na minha cabeça, os movimentos, eu sentia a vibração das pessoas”, rememora.

A partir desse arrebatamento, Juru foi, pouco a pouco, compreendendo que a dança era parte de um movimento que envolve elementos outros para além da dança. “Além do vogue, que é uma modalidade de performance que inclui dança e montação, a música é muito importante em uma Ballroom. Outro elemento fundamental é o chant”, avalia, fazendo menção a personagem que dá expressão vocal aos acontecimentos, rimando, elogiando, provocando e narrando movimentos, além de interagir com o público – que é outro fator essencial nessa dinâmica. “Tem a galera no em torno, conectada, participativa, que é crucial para tudo acontecer”, estabelece, pontuando que a experiência impactante daquela primeira vez se repetiu nas outras balls: “Aquilo me dava fome de viver. É muita gente talentosa junta, é muita energia, é muita coisa acontecendo. É como se você se recarregasse”.

Filme depura o que há de característico no ballroom carioca

Da raiz periférica, passando pela politização do movimento e pela celebração de figuras icônicas da cultura local, facetas específicas das balls cariocas aparecem sublinhadas no documentário. “A gente tentou inscrever (essa identidade) de diferentes maneiras, não só faladas”, comenta Vitã, lembrando que a produção recorre a depoimentos de pessoas da cena e de pesquisadoras que, também pertencentes à cultura ballroom, estão pensando essa manifestação a partir de sua dimensão cultural, afrodiaspórica e como uma tecnologia travesti que se consolida em Nova York, nos anos 1970, e, depois, vai se espalhar pelo mundo.

Foto de performance em ball registrada no documentário 'Casa de Baile'
Foto de performance em ball registrada no documentário 'Salão de Baile'

“Quando chega no Rio de Janeiro, por volta de 2015 ou 2016, essa manifestação vai encontrar uma cena cultural muito rica, que já tinha uma história pregressa de outra cultura afrodiaspórica, outra cultura travesti, outra cultura LGBT”, reflete. “Tudo isso vai se somando e a ballroom absorve esses elementos, como acontece em outros lugares, onde ela também vai dialogar com a cultura local”, diz. Um exemplo dessa inscrição carioca aparece nas categorias e temas. “É algo que registramos no filme, como as balls que abordam a cultura periférica e, dentro dessa categoria, brincam com temas, como ‘farofeiros na praia’”, destaca. “E tem o batekoo, que é brasileiro e traz a referência muito forte do funk na sonoridade e nos movimentos. Em um baile que está no filme, o tema, dentro dessa categoria, era MC Carol, que foi homenageada nas performances”, cita.

Carnaval e política

O Carnaval, outro elemento cultural forte no Rio, também entra nessa equação. “Tem muitas pessoas que trabalham em comissão de frente de escolas de samba, gente que atua com a parte de indumentária dos desfiles e que estão na cena. E a gente mostra isso, por exemplo, em uma ball em que o tema na categoria ‘runway’ foi o Carnaval periférico, tendo muita ‘bate-bola’ (nome de uma fantasia carnavalesca tradicional na periferia carioca)”, lembra.

Por sua vez, Juru reflete que, no Rio, essa cultura chega sobretudo através da dança. “É uma cidade muito voltada para a dança, que tem muitos profissionais dessa área e, talvez por isso, temos aqui performances muito vigorosas. Mas, ao mesmo tempo, há também o entendimento que a dança é só uma parte da coisa”, pondera. “Eu sinto que, de 2017 para cá, houve um processo de amadurecimento, sobressaltando características como o protagonismo das pessoas pretas falando de questões locais”, indica, dizendo notar um movimento de politização crescente na cena ballroom.

Conexões com Minas Gerais

Ainda que não seja o foco do documentário, Vitã lembra que existem diversas conexões entre a cena ballroom fluminense e a mineira. Um elo que vem desde a introdução dessa manifestação cultural no Rio de Janeiro por meio de contribuições do Trio Lipstick, de Belo Horizonte.

Formado pelas dançarinas Maria Teresa Moreira, Paula Zaidan e Raquel Parreira, o trio foi fundamental para a formatação do ballroom no Estado – algo que, inclusive, aparece em imagens de arquivo na ball Conferência das Bruxas, a primeira realizada em território fluminense.

Primeira 'ball' realizada no Rio de Janeiro, chamada 'Conferência das Bruxas', que contou com a participação do Trio Lipstick, de Belo Horizonte
Trio Lipstick, de BH, na primeira 'ball' realizada no Rio

Juru, aliás, assinala que a capital mineira foi, por muito tempo, um ponto de difusão dessa cultura. “O BH Vogue Fever, que foi um evento organizado por muitos anos pelo Trio Lipstick, em Belo Horizonte, teve um papel fundamental para a formatação da cena brasileira (do ballroom), como espaço de troca, de aprendizado. Um lugar que pessoas do Brasil inteiro foram anualmente para se encontrar e aprender a constituir essa cena, que hoje é tão forte em vários Estados”, avalia.