Patrimônio

Conheça o Cecor, da UFMG, referência em conservação-restauração no Brasil

Órgão da instituição mineira já atuou em Mariana e Brumadinho e no incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro

Por Bruno Mateus
Publicado em 06 de fevereiro de 2023 | 07:30
 
 
 
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Naquele 8 de janeiro de 2023, dia marcado por atentados à democracia brasileira, Alessandra Rosado acompanhou, atônita, os atos ocorridos em Brasília, promovidos por bolsonaristas radicais. Trajados com camisas amarelas, eles invadiram a Praça dos Três Poderes – onde estão o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e a sede do Supremo Tribunal Federal (STF), sedes do Executivo federal, do Legislativo federal e da Corte máxima do Judiciário, respectivamente – num ataque golpista contra as instituições, deixando também um grande prejuízo para nosso patrimônio histórico e cultural.

Diversas obras de arte, entre pinturas, esculturas e relógios, e móveis históricos foram vandalizados. A escultura “O Flautista”, de Bruno Giorgi, avaliada em R$ 250 mil, e a tela “As Mulatas”, do pintor Di Cavalcanti, obra avaliada em R$ 8 milhões, estão na lista de itens danificados. 

Era para ser o pós-almoço de um domingo qualquer de início de férias. Era. “Ao ver as imagens na televisão, fiquei em choque. Janelas estilhaçadas, cadeiras voando e um acervo importante sendo vandalizado, destruído. Só os prédios já são bens que devem ser protegidos. Para mim, sendo profissional da área, foi dramático ver tudo aquilo”, ela comenta. 

Alessandra Rosado é conservadora-restauradora e diretora do Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais (Cecor), da Escola de Belas Artes da UFMG. Naquele mesmo domingo, em Belo Horizonte, a professora, em diálogo com colegas da instituição, enviou um ofício à Presidência da República colocando o Cecor à disposição do Executivo federal. “Pela nossa experiência em ações dessa natureza e como servidora federal, me senti obrigada a agir e oferecer nossa expertise, nosso conhecimento”, completa Alessandra.  

Desde então, o Cecor mantém conversas com as três instâncias – Executivo, Legislativo e Judiciário. “Fomos muito bem recebidos. Inclusive, estou em contato, trocando informações técnicas, identificando profissionais que possam trabalhar nesse caso. Nossa participação já está se dando nesse nível, mesmo que efetivamente não seja o caso de alguém da nossa equipe ficar lá (em Brasília)”, conta o vice-diretor do Cecor, Luiz Souza. 

Instituição atuou em Brumadinho e Mariana e também oferece treinamento

A história do Cecor tem início em 1979, quando surge como órgão complementar da Escola de Belas Artes da UFMG para apoiar o ensino e a pesquisa na área de conservação e restauração de obras artísticas e culturais. Entre os trabalhos desenvolvidos, o Cecor atua, principalmente, no restauro de pinturas, esculturas, obras sobre papel, documentos gráficos e fotografias. As peças podem ser de pequeno, médio ou grande porte, originárias de acervos públicos ou privados, e recebem um diagnóstico minucioso para avaliar os danos e suas causas – se foi, por exemplo, ação do clima (temperatura, umidade), efeitos físicos, incêndio ou crime. 

Em seguida, elas são direcionadas para um dos sete laboratórios que compõem a estrutura do Cecor: conservação-restauração de escultura, documentação científica por imagem, ciência da conservação, conservação preventiva, conservação-restauração de documentos gráficos e fílmicos, conservação e restauração de pinturas e laboratório de arqueometria. Algumas obras podem ser restauradas em um dia; outras intervenções podem durar até um ano.  

“Recebemos, principalmente, pinturas, esculturas, obras sobre papel, documentos gráficos, fotografias. Às vezes, realizamos um trabalho que é ligado a análises físico-químicas, então as obras são encaminhadas para cada setor do Cecor para ter esse procedimento de estudo e análise”, salienta a conservadora-restauradora Moema Queiroz, do Cecor.  

Em recentes episódios de grandes proporções, o Cecor integrou ou comandou equipes que atuaram em Mariana e Brumadinho, varridas pela lama da Vale após o rompimento das barragens da mineradora, crimes socioambientais que mataram, em 2015, 19 pessoas em Mariana e, quatro anos depois, 272 em Brumadinho, e ainda deixam rastros de destruição. 

Nessas cidades, os profissionais do Cecor auxiliaram no resgate das obras do patrimônio público numa espécie de primeiros socorros. “Não pode pegar de qualquer jeito”, salienta Souza. “Em Mariana demos atendimento imediato para a remoção de obras em locais atingidos, numa ação junto aos Bombeiros, Iepha e Ministério Público do Estado. Não chegamos a restaurar nenhuma obra, porque a gestão da recuperação passou para a Renova”, explica Luiz Souza. Ele também fala sobre a atuação no Museu Nacional após o incêndio em setembro de 2018. 

O crânio de Luzia, fóssil humano mais antigo do Brasil, foi encontrado após ficar desaparecido nos escombros do museu, para o qual o Cecor prestou assessoria de gestão ambiental e gestão de riscos. “Acompanhei uma equipe da Dinamarca que faz estudos sobre genética de populações usando DNA antigo, retirado do osso petroso dos crânios arqueológicos. Apesar de termos retirado a amostra e esta ter seguido para a Dinamarca, não foi possível efetuar os estudos no crânio da Luzia porque o incêndio prejudicou o DNA”, conta o professor, que participou de análises científicas das obras de arte apreendidas pela operação Lava Jato. 

O órgão também oferece treinamentos e cursos para a Polícia Federal conseguir verificar a autenticidade e o valor de obras de arte, além de continuar prestando consultoria ao Museu Nacional.  

Minas Gerais teve o primeiro curso de graduação de conservação-restauração do Brasil 

 Reduto fundamental do patrimônio histórico e cultural brasileiro, Minas Gerais tem uma história vinculada à formação profissional e acadêmica de conservadores-restauradores desde os anos 1970, com o surgimento do curso técnico da Fundação de Arte de Ouro Preto (Faop). Em 1979, o Cecor foi fundado, e, no ano seguinte, a UFMG criou o curso de especialização.  

Com o Reuni (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), em 2008, a instituição, de forma pioneira, abriu o primeiro curso de graduação em conservação e restauração de bens culturais móveis e integrados do Brasil. Posteriormente, as federais do Rio Grande do Sul, do Rio de Janeiro e do Pará seguiram o mesmo caminho.  

Mais recentemente, em 2012, o Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG, campus Ouro Preto) abriu vagas para o curso de tecnologia em conservação e restauro. Vice-diretor do Cecor, Luiz Souza destaca a excelência prática e teórica oferecida no Estado. “Minas Gerais é o único Estado da Federação que congrega uma formação desde o nível técnico até a pós-graduação e linhas de pesquisa nos cursos que temos aqui, na UFMG”, observa o professor.  

Quatro ex-alunas do curso de conservação e restauração de bens culturais móveis e integrados da UFMG – Aline Rabello, Joana Paulino, Virgínia Barbosa e Vívian Santiago – estão envolvidas na recuperação das obras vandalizadas nos prédios dos Três Poderes, em Brasília. Elas atuam pela Seção de Conservação e Restauração da Câmara dos Deputados.  

Doutoranda na Escola de Belas Artes da UFMG, a engenheira metalúrgica Dâmia Dias foi atraída pela vocação interdisciplinar da área de conservação-restauração. Embora tenha escolhido um curso de exatas na graduação, ela sempre cultivou interesse por outras ciências.  

“Posso contribuir para a área de conservação com meu conhecimento científico adquirido na engenharia, fazendo estudos químicos e físicos das obras e arte. Sou engenheira, mas jamais conseguiria desenvolver um trabalho nas belas-artes se não tivesse amparo científico e interesse pela área”, comenta Dâmia. “É importante frisar que a formação tem aspectos da geografia, arquitetura, biologia, química, artes, humanidades e dialoga com diversas áreas”, acrescenta Alessandra Rosado, diretora do Cecor.  

Saber lidar com questões éticas da profissão, aliar conhecimento prático e teórico e buscar renovação e aperfeiçoamento constantes são alguns objetivos que o profissional da área deve ter em conta. A conservação-restauração é também uma ciência que envolve amplo conhecimento da estética do artista responsável pela obra a ser restaurada e dos materiais que ele utilizava, por exemplo. A intervenção, aliás, “deve ser identificada e visualizada somente pelo profissional, o leigo não pode perceber”, afirma Moema Queiroz.  

A profissão de conservador-restaurador ainda não é regulamentada. Um projeto de lei tramita no Congresso Nacional, e, segundo a restauradora do Cecor, é fundamental que ele seja aprovado para garantir reconhecimento e direitos e reparar equívocos.

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