O personagem principal do filme "Depois de ser Cinza", que estreia nesta quinta-feira nos cinemas, é antropólogo. Uma informação que tem ligação com o conceito de alteridade, uma linha de pensamento da Antropologia que nos leva a um exercício de se colocar no lugar do outro.
A narrativa não-linear do longa de Eduardo Wannmacher encontra nesse conceito a sua principal razão de ser, em que a história de três mulheres é contada pela perspectiva de Raul. Para chegarmos ao entendimento pleno da jornada do antropólogo, é preciso também conhecê-las.
Apesar de essas histórias se entrecruzarem em diferentes épocas, elas só trarão todas as respostas no instante final. O roteiro de Leo Garcia cria um enredo a conta-gotas. Para isso, ele inverte a narrativa, iniciando-se pelo fim, retornando ao começo e depois chegando ao meio.
Lá no fundo "Depois de ser Cinza" é uma história de amores antigos não completamente desfeitos que levam Raul a uma via-crúcis, como um drama truffautiano com tintas mais pesadas. Mas o misturar dessas cartas dá outra dimensão ao filme de Wannmacher.
Essa abordagem nos remete ao cinema do polonês Krzysztof Kieślowski, que, em filmes como "A Dupla Vida de Veronique" e a Trilogia das Cores, estabelece uma teia muito bem amarrada de coincidências que apontam para uma discussão que permeia toda sua trajetória: acaso ou destino?
O filme brasileiro, passado em Porto Alegre e cidades da Croácia, assim como os de Kieslowski, não traz essa definição mastigada, preferindo deixar uma porta aberta. Em comum entre Raul e o trio feminino está um desejo de fuga, nos mais diferentes níveis.
É o conceito de alteridade que aglutina esses personagens, em que a personalidade e Raul vai sendo descortinada pelos olhares de Isabela, Manuela e Isabel. O texto não aproveita muito o diferente contexto cultural (em relação à Croácia) como Kieslowski também fez.
Também é bem menos afetivo em relação ao mundo que os cerca, especialmente em torno de um continente mais antigo e marcado por conflitos seculares. A alteridade é aplicada a uma tentativa de encontro para aparar as assimetrias dos protagonistas.
Melhor ator no Festival de Brasília com o curta "Cidade Nova", João Campos tem uma atuação marcante, tornando bastante críveis as modulações de Raul, por onde sentimentos transbordam, entre o amor pleno e uma sensação atroz de culpa, e fazem a ponte com o espectador.