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Dia Nacional dos Quadrinhos: produção de HQs ganha fôlego com a internet

Produções publicadas na web acabam conquistando novos públicos e revelando novos talentos do gênero no Brasil

Por Jéssica Malta
Publicado em 30 de janeiro de 2023 | 06:30
 
 
 
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Há exatos 154 anos, no dia 30 de janeiro de 1869, o desenhista italo-brasileiro Angelo Agostini publicava a primeira história em quadrinhos do Brasil. Chamada de “As Aventuras de Nhô-Quim ou Impressões de uma Viagem à Corte”, a HQ acompanhava a vida de um caipira que, após se mudar para o Rio de Janeiro, acabava se chocando com a civilização meio rural e meio urbana da cidade. Nhô-Quim era uma caricatura dos costumes da época. Publicada semanalmente na revista Vida Fluminense, a história se tornou um marco tão grande que a data do lançamento deu origem ao Dia Nacional das Histórias em Quadrinhos, celebrado nesta segunda-feira (30). 

 

 

De lá para cá, muita coisa aconteceu. A produção de quadrinhos se expandiu e se diversificou. Ganhou os jornais em tirinhas satíricas - que revelaram nomes como Laerte, Glauco, Angeli e  Chico Caruso -, continuou em revistas e também passou a circular em publicações próprias - como a Gibi, de 1939, a primeira revista dedicada ao gênero no país, que fez, inclusive, com que o seu nome virasse sinônimo do formato no Brasil. 

Com cores ou sem cores, os quadrinhos continuaram a ganhar força no país. Passaram a explorar temáticas cada vez mais diversas e a conquistar públicos diferentes - principalmente o infantil, que abraçou produções que se tornaram clássicas no Brasil como  “O Menino Maluquinho” e “Pererê”, de Ziraldo, e “A Turma da Mônica”, de Maurício de Souza.

Agora, com a internet, a produção de HQs vive um novo momento e conquista, ainda, mais fôlego. É nesse ambiente que surgem novas histórias, novos formatos e, também,  novos talentos. Um deles é o belo-horizontino Vitor Cafaggi, que assina histórias como “Franjinha”, “Turma da Mônica: Laços” e “Turma da Mônica: Lições”, que ganharam adaptação para o cinema, além de “Turma da Mônica: Lembranças” -  as três últimas, em parceria com a irmã, Lu Cafaggi. 

“O digital é uma boa porta de entrada, tanto para leitores quanto para autores. Comecei a fazer quadrinhos digitais. Postava em um blog e, nele, fui criando o meu público e chamando a atenção de editores”, conta o mineiro que vê a internet também como um bom campo para que o público se aproxime do formato - inclusive, dando atenção às produções nacionais que, segundo ele, são caracterizadas pela diversidade.

Trajetória de Cafaggi vira exposição

Com mais de 10 anos de estrada, Cafaggi tem a carreira revisitada em uma mostra individual na CDQ – Escola Técnica de Artes Visuais e Digitais, na região Centro-Sul de Belo Horizonte. Em  “Passos Valentes! – Exposição Especial do Vitor Cafaggi”, que fica em cartaz desta segunda (30) até o dia 31 de março e tem entradas gratuitas, o quadrinista faz um mergulho em sua trajetória e também abre para o público parte do seu processo de criação. 

“Como a Casa dos Quadrinhos é uma escola, ela recebe pessoas que gostam de ver o processo e não só o resultado final. Também é algo legal de mostrar para quem está começando e estudando. Poder ver todas as tentativas, tudo que acontece antes de terminar uma obra”, explica o quadrinista mineiro. 

Na mostra ele seleciona um pouco de todas as suas produções, desde os quadrinhos independentes às histórias feitas para editoras e para a Maurício de Sousa Produções. “Inclui até as minhas primeiras tirinhas, feitas para a internet. Isso também para mostrar a evolução do trabalho nesses mais de 10 anos de carreira”.

Quadrinhos no Instagram 

Fran e Ju são as protagonistas da HQ 'Confinada'

Foi também pela internet que o carioca Leandro Assis começou a publicar seu trabalho como quadrinista. A história “Os Santos”, que começou como um projeto de tirinhas críticas, ganhou força e acabou dando origem, ainda, a outra história: “Confinada” - obra que foi publicada inicialmente no Instagram e alcançou quase 8 mil cópias vendidas somente na pré-venda, feita pelo Catarse. 

“Sempre fui leitor e gostei muito [de quadrinhos]. Também tinha vontade de produzir um, cheguei a ter uma experiência como roteirista a partir de um roteiro que era para ser um longa metragem, mas acabou virando uma graphic novel. Continuei fazendo meus trabalhos com roteiros de cinema e TV e, em 2019, por aí, resolvi que queria contar as minhas histórias”, conta o ilustrador e roteirista.

A inspiração foi o contexto sociopolítico do país, a onda da extrema direita e, ainda, as inúmeras demonstrações de preconceito, homofobia e negacionismo que se multiplicavam no período - com ainda mais força, durante a pandemia. 

O projeto viralizou quando Leandro compartilhou a terceira tirinha no Instagram. “Acho que se tivesse feito um livro, ela não teria tido esse alcance. Porque na rede social as pessoas compartilhavam, mandavam para amigos. Era uma angústia dividida por muita gente, vendo pessoas próximas estando alienadas”, explica. 

Embora pontue que a internet possibilita um maior alcance para as produções, o ilustrador acredita também que é preciso ter a sorte de estar na hora certa, no lugar certo e falando o que as pessoas querem ouvir - o que ele acredita que aconteceu com suas histórias. “Qualquer outro trabalho não teria viralizado como ‘Os Santos’ viralizou”. 

Foi, ainda, pela internet que ele encontrou uma parceira para o projeto: a ativista e escritora Triscila Oliveira. “Quando estava na 10, 11, por aí, comecei a sentir falta de alguém para me ajudar porque comecei a falar também da questão das domésticas, das mulheres negras. Para abordar isso, eu usava como referência a minha memória e também o relato de pessoas que liam as tiras e comentavam. Foi então que vi um comentário de Triscila, vi que ela tinha um perfil no Instagram de ativismo, de luta antirracista, e feminista. Conversei com ela e ela passou a escrever comigo”, conta. 

Outro ponto positivo do universo digital é o alcance de um novo público para o gênero. Leandro relata que, principalmente por abordar um tema que era muito discutido e que afetada muitas pessoas - “Confinada”, por exemplo, mostra como a pandemia afetou as pessoas de diferentes maneiras - suas produções alcançaram pessoas que não tinham costume de consumirem HQs. “Muita gente me dizia que achava até chato, outras não tinham noção que tinham histórias mais sérias nos quadrinhos. Como é uma tira feita também no Instagram, com 10 quadros, acaba não sendo uma forma de contar que imediatamente remete aos quadrinhos tradicionais”, observa. 

Web é um bom caminho para quem está começando

Professora, pesquisadora e quadrinista, a mineira Carol Cunha é outra artista que reforça a importância da internet para o mercado de quadrinhos no país. “Tem muita gente que começou a carreira fazendo quadrinhos online e estourou”, diz ela, citando como exemplo o quadrinista Carlos Ruas, de “Um Sábado Qualquer”. “Ele começou com as tirinhas e também passou a produzir produtos relacionados aos quadrinhos dele”, explica. 

Carol cita, também, um de seus ex-alunos. “O Alec começou fazendo histórias no Facebook e hoje em dia está com as HQs publicadas pela New Pop”, exemplifica. “Na verdade, tem uma tendência de começar publicando na internet para depois fazermos as HQs físicas”, observa. 

O ilustrador e animador Helvio Avelar, do jornal O TEMPO, ressalta que algumas plataformas online também acabam sendo um bom espaço para artistas iniciantes, citando como exemplo aplicativos como o Webtoon. “Ele é aberto para que os artistas entrem e isso é muito legal para quem já tem um personagem, uma história, porque a visibilidade é com e já tem um foco. É como se fosse uma vitrine”, observa.

Internet é importante, mas não substitui o papel

Ilustrador de O TEMPO, o quadrinista Acir Piragibe - autor de  D´artagnan, além de nome por trás dos projetos É TEMPO DE HQ e QUADRINHOS DA COPA - ressalta que embora a internet tenha um bom potencial de divulgação e seja uma vitrine para os trabalhos, o produto final dos quadrinistas acaba sempre sendo a impressão.  “Por mais que esse relacionamento possa começar na internet ou o artista possa ter um espaço novo dentro dela, ele continuará vendendo o físico. Vai participar de feiras e eventos, vendendo livros, sketches, entre outros”, explica.

Ele acrescenta ainda que não vê o digital substituindo os livros e as revistas, mas sim, sendo um caminho para que se chegue até elas. “O mercado tem sido cada vez mais seletivo com o trabalho que vai virar livro, não é mais aquele quadrinho de banca. Esse tipo de quadrinho mensal está para acabar mesmo. O que vai prevalecer são livros fechados, de luxo, livros de prateleira. O colecionador, o público de nicho vai em busca desse conteúdo”. 

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