(Alerta spoiler). Antes de entrar na mansão, Ki-woo e sua irmã Ki-jeong combinam uma estratégia. Cantando e marcando as palavras com os dedos das mãos, a jovem, que finge ser uma professora de arteterapia para, assim como seu irmão, se infiltrar na rotina da família Park, arquiteta o plano: “Espere. Jéssica, filha única. Illinois, Chicago. Colega de Kim Jin Mo, ele é seu primo”.
Quem assistir essa cena na versão dublada de “Parasita”, longa sul-coreano vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2019 e de quatro categorias no Oscar, incluindo a de melhor filme, em fevereiro deste ano, escutará a voz da atriz mineira Paula Amorim. Ela interpreta a filha da pobretona família Kim, que parte em busca de uma oportunidade de ascensão social por meios nada tradicionais. Paula é uma das integrantes do casting do estúdio belo-horizontino Scriptus, escolhido para dar o tom brasileiro ao mais recente fenômeno do cinema mundial.
No fim de fevereiro, a Scriptus entrou em uma concorrência com outras produtoras do país. Como teste, ela teria de enviar o trailer da obra do diretor sul-coreano Bong Joon-ho. dublado para uma comissão no Brasil e em Londres. Iniciou-se ali um processo de tradução, escolha dos atores e atrizes, gravação das vozes e mixagem, tudo feito em três dias. “Finalizamos, mandamos numa quarta-feira e, na sexta, nos ligaram dizendo que havíamos sido os escolhidos”, conta a diretora da empresa de comunicação audiovisual, Rafaela Lôbo.
Com a aprovação e o sinal verde para dar continuidade ao trabalho, um processo muito maior começou em seguida. “É um filme grande, tem características muito próprias da entonação do coreano”, ela explica. Todo o processo - tradução, pré-produção, escolha de casting, gravação das vozes e mixagem - levou apenas 10 dias para ser concluído.
“Foi uma loucura, uma coisa alucinante, trabalhamos 20 horas por dia. Para se ter uma ideia, normalmente os estúdios pedem uma semana semana para mixar, nós fizemos em um dia”, conta Rafaela, que destaca a qualidade do profissional mineiro e celebra o fato de o trabalho ter sido feito pela empresa de ponta a ponta. “Além de ‘Parasita’ ser um filme maravilhoso e envolvente, é a primeira vez que Minas Gerais tem a chance de fazer um trabalho como esse na área da dublagem”, completa a colunista da Rádio Super 91,7 FM.
Ao todo, 19 atores (10 pertencem ao núcleo principal do filme) participaram da empreitada - exceto a carioca Dora Sá, que empresta sua voz à personagem Choong-sook, matriarca da família Kim, todos são mineiros, como também são o mixador e a tradutora. Os sons, efeitos e faixas de música são originais, o que se substituiu no filme dublado foi única e exclusivamente a voz, com o cuidado de se manter a ideia e a fluidez originais. “Não tivemos nenhum detalhe para ser alterado, aprovaram o trabalho, que é tão artesanal, sem objeções. Ficou redondo do início ao fim. Foi uma responsabilidade imensa, mas uma experiência maravilhosa”, comenta Rafaela.
Segundo o diretor de dublagem Marcelo do Vale, a seleção do elenco seguiu alguns critérios, como a escolha por atores com vozes condizentes às originais. Segundo ele, uns dos cuidados durante a gravação das vozes foi dar fluidez na interpretação respeitando o original. “A interpretação asiática é diferente, e o coreano é um idioma totalmente de vogais, esse foi o grande desafio: conseguir esse encaixe e essa sincronia labial. A boa dublagem não incomoda o espectador, não pode ser clichê ou afetada”, comenta Vale, que também faz uma pequena participação no filme.
Algumas cautelas foram adotadas durante os trabalhos, como conta Rafaela: “Se o ator começou a gravar de manhã, o ideal é que ele mantenha o trabalho sempre pela manhã, porque a voz muda muito durante o dia”.
Acessibilidade
Ainda há quem faça cara ruim para versões dubladas de sucessos do cinema. Porém, de acordo com uma pesquisa divulgada pelo jornal Folha de S. Paulo em julho de 2018, 6 a cada 10 brasileiros preferem assistir a filmes nesse formato. No mesmo período, a Netflix Brasil divulgou que 80% a 90% dos espectadores de séries optam pela versão dublada. O seriado “13 Reasons Why”, por exemplo, foi visto no nosso idioma por 84% da audiência em território nacional.
Para Rafaela, a técnica é pensado como ferramenta de acessibilidade. A diretora da Scriptus avalia que, por mais que a pessoa leia a legenda de forma rápida, algum detalhe imagético importante ou mesmo a fotografia da obra podem escapar até aos olhos mais atentos.
“As pessoas têm que ter acesso à informação e à cultura. Sempre tive essa preocupação de transformar vozes em arte. Acreditamos no poder da voz e do acesso. A dublagem é um trabalho de acessibilidade de massa para uma população”, pondera.
Marcelo do Vale, que é um dos diretores da Scriptus, vê com otimismo o mercado da dublagem em Minas e diz que é importante profissionalizar os atores para essa técnica. “Assim como no eixo Rio-SP, temos ótimos profissionais”, avalia.
Onde assistir
A versão dublada de “Parasita” está disponível nas plataformas de streaming Now, Vivo TV, Oi PLay e Looke.