Sétima arte

Festival Varilux de Cinema exibe o potente 'Contratempos'

Ao focar a luta de uma mulher que cria sozinha seus dois filhos, o filme de Eric Gravel também expõe a rotina pesada de trabalhadores invisíveis

Por Patrícia Cassese
Publicado em 25 de junho de 2022 | 10:26
 
 
 
normal

Uma mãe separada, que cria seus dois filhos pequenos sozinha. O marido não tem dado as caras ultimamente, não atende o telefone, não retorna as ligações e, na verdade, está em atraso com o pagamento da pensão. Ela mora no subúrbio, mas trabalha no centro da cidade, quilômetros distante. E se todo dia já é um tour de force chegar pontualmente ao serviço - por conta das baldeações necessárias, já que não há linha direta -, com uma greve nos transportes, a coisa assume proporções dantescas. Ah, sim, inclua-se, nesta conta, o fato de, justamente por passar o dia inteiro fora, essa mulher não ter como levar e buscar as crianças na escola, delegando essa tarefa a uma senhora que, na verdade, não anda muito propensa a dar continuidade à incumbência. E quando chega exausta, à noite, depois de um dia de trabalho braçal árduo, a mulher ainda precisa cuidar daqueles "pequenos" detalhes, como o banho dos filhos, o pijama, colocá-los para dormir.

Esta descrição cairia como uma luva para mulheres que habitam todas as grandes cidades do mundo. Mas, no caso, corresponde à sinopse de "Contratempos" ("A Plein Temps", 2021), filme de Eric Gravel que chega agora ao Brasil no esteio do Festival Varilux de Cinema, em curso, com sessões também em BH. A mulher em questão é Julie, camareira em um hotel de luxo, incumbida de treinar as novatas, mas sem deixar de também ter que dar conta do serviço pesado, que inclui limpar um banheiro no qual há fezes até na parede, após a passagem de um astro da música. Aliás, ali, o cliente, ou melhor, o hóspede, tem sempre razão, e, de acordo com o status do apartamento, é necessário uma equipe para deixá-lo devidamente preparado. Nenhum detalhe pode passar batido.

A este caldeirão adicione-se o fato de que Julie é uma mulher que profissionalmente se preparou para ocupar outro tipo de cargo, no caso, mais ligado à área de exatas - que fique claro, essa observação de maneira alguma quer desmerecer um ofício (o de camareira) que, mesmo invisibilizado, por ser feito discretamente, nos bastidores, é sabiamente árduo e merecedor de todo o respeito.

Julie é interpretada por Laure Calamy, que se tornou conhecidíssima no Brasil por conta da minissérie "Dix Pour Cent", da Netflix. Lá, ela interpretava Noémie Leclerc, a assistente de Mathias (Thibault de Montalembert), com quem tem um caso. Como a produção explora um viés mais cômico - ao menos no caso da personagem Noémie -, para quem só conhecia a atriz de lá, é importante citar o quanto Laure impacta por sua interpretação irretocável, estupenda mesmo. Não por menos, ela ganhou o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cinema de Veneza, na Mostra Horizontes, que também agraciou Gravel na direção deste filme.

Na trama, acuada por todos os lados, Julie até tenta achar vias para mudar o curso da vida, se submetendo a uma entrevista de emprego para um cargo melhor remunerado. Mas a verdade é que até para isso a ocupação no hotel constitui-se um empecilho, uma vez que o dia a dia é rigoroso, com controle estreito de horários, cartões para registrá-los e tarefas a mancheias, não bastasse os vários imprevistos. Não por outro motivo, os subterfúgios aos quais ela recorre para que não notem eventuais saídas são, convenhamos, quase todos desculpáveis, posto que não há de fato alternativa. Certo, a consequência de uma das armações de Julie acaba afetando diretamente a vida de outra pessoa, o que, claro, não é nada bom. Mas, ao mesmo tempo, ao tentar furar a bolha das impossibilidades, Julie reproduz um quadro que está atrelado ao mundo corporativo moderno, no qual os trabalhadores estão tão enredados - seja por jornadas extenuantes, seja pelo custo de vida massacrante - que tentar sair torna-se uma missão quase impossível.

A greve nos transportes mais acessados - como trens e metrôs -, aliada à circulação restrita das linhas de ônibus, aos engarrafamentos consequentes, ao preço alto das corridas de carro e a uma Paris em convulsão (com manifestantes ateando fofo em veículos) entra em cena para elevar à décima potência o desespero de Julie, que se reflete a todo momento nas expressões de Laure Calamy. Além dos movimentos de câmera precisos do diretor, que transmitem ao espectador toda a luta e todo o desespero desta mãe, mulher e assalariada, um "detalhe" que não pode ficar de fora é a trilha incidental, em perfeita consonância com os momentos "Corra, Lola, Corra" vividos por Julie.

A luta diária de Julie, como pontuado, se espraia mundo afora. Neste momento, há milhares de Julies tentando dar conta, sozinhas, da criação dos filhos, sem o apoio, financeiro ou moral, dos pais das crianças. Há milhares de mulheres que, neste momento, podem estar tirando um item da sacola de compras na hora de passar pelo caixa do supermercado porque o saldo do cartão não deu para pagar o que esperavam levar para a casa. Dezenas, centenas, milhares de mães que têm que deixar os filhos com outras pessoas porque trabalham longe, têm jornadas que consomem todas as horas do dia e padecem da ausência de escolas em tempo integral. Quantas pessoas não aproveitam o tempo de deslocamento até o trabalho para dormir mais um pouco - isso quando não estão viajando de pé, acotoveladas, espremidas como em latas de sardinhas. Quantos não estão por aí, empregados em outros ofícios que não aqueles para os quais dedicaram tantas horas de estudos? Quantos trabalhadores não enfrentam os olhares impiedosos e sanções por se atrasarem mesmo quando tudo conspira contra?

Não por outro motivo, "Contratempos" é um filme que tanto agrada pelo potencial humano, quanto pelo viés político, condensando algumas das práticas inerentes ao capitalismo e mostrando a sua ressonância na vida dos milhões que todo dia se levantam antes de o sol raiar, enfrentando frio, chuva ou calor, e só retornando às suas casas tarde da noite, para dormir algumas horas antes de deixarem seus travesseiros de lado para começar a fazer a roda girar novamente, ainda que ninguém se dê conta de suas feições. E de seus desesperos.

 

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!