Na seara da música, o ano de 2022 tem sido recheado pelo marco dos 80 anos de nascimento de vários ícones da MPB – basta citar Nara Leão, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Em outubro, o time será engrossado por Milton Nascimento, e, em novembro, por Paulinho da Viola. Mas neste 12 de agosto, os holofotes se deslocam para a mineira Clara Francisca Gonçalves Pinheiro, ou simplesmente Clara Nunes.
Nascida em Paraopeba, cidade situada a 100 Km de Belo Horizonte, e onde viveu até os 15 anos, Clara começou a galgar os degraus da fama ainda na capital mineira, abrilhantando a programação de emissoras como a rádio Inconfidência e a TV Itacolomi. Incentivada pelo namorado Aurino Araújo (irmão do cantor Eduardo Araújo), se mudou para o Rio de Janeiro em 1965, e, a partir daí, sua voz ecoou não só pelo Brasil, do Oiapoque ao Chuí, como em vários países do mundo, caso de Angola.
Na verdade, mesmo com seu desaparecimento – faleceu em 5 de março de 1983, após passar 28 dias em uma UTI, em decorrência de uma parada cardíaca ocorrida em meio a uma cirurgia de varizes, e provocada por um choque anafilático –, continua ecoando, com potência e brilho.
Não obstante a consagração, porém, a data redonda contará com poucas manifestações. Na telinha, o Canal Brasil reestreou, no último dia 1º, a série “Clara”, de Darcy Burger, que traz imagens de arquivo, além de depoimentos de pessoas que conviveram com a guerreira, como Paulinho da Viola. De acordo com a colunista Monica Bergamo, do jornal “Folha de S. Paulo”, a atriz Vanessa Gerbelli prepara um espetáculo sobre a mineira, mas para 2023, ano de um outro marco na trajetória de Clara Nunes: 40 anos de morte.
Na terral natal da cantora, a reverência vem em forma de uma exposição que, aliás, marca a reabertura do Memorial Clara Nunes. Gerido pelo Instituto Clara Nunes e localizado na rua Fernando Lima, 250, no centro de Caetanópolis, o espaço estava fechado há três anos, ou seja, mesmo antes da pandemia, como conta Marlon de Souza Silva, membro do Conselho de Pesquisa do Instituto e curador do Memorial. O cerrar de portas, no intervalo citado, ele credita à falta de recursos, já que o espaço padecia da ausência de apoio seja do poder público, seja do privado.
“Estava complicado. O local foi inaugurado em 2012, precisava de alguns reparos, mas não havia verba”, diz, ressaltando que, internamente, porém, tarefas como catalogação de pertences da artista, prosseguiram. “Durante a pandemia, inclusive chegamos a realizar algumas lives”, relata ele.
Aliás, Marlon revela que a manutenção do espaço é mérito de um grupo de voluntários e, claro, da ajuda de fãs da cantora. Mais recentemente, uma verba foi obtida graças à Lei Aldir Blanc, possibilitando a reabertura. A aludida exposição reúne documentos dos mais diversos, como o registro de matrícula de Clara Nunes na escola e os adereços que usou na última vez que desfilou pela Portela, sua escola de coração. Há, ainda, uma mecha de cabelo de Clara, que foi cortada por sua irmã mais velha, Maria Gonçalves, a Dindinha, ainda quando a artista estava no CTI.
Pioneirismo
Autor do livro “Canto de Rainhas – O Poder das Mulheres que Escreveram a história do samba” (Agir), que fala de Clara Nunes, Elza Soares, Dona Ivone Lara, Alcione e Beth Carvalho, o jornalista e pesquisador Leonardo Bruno ressalta três pontos da trajetória da mineira ligados à característica de pioneirismo. “No início dos anos 70, não existia, na MPB, a figura da sambista, uma cantora que ia buscar repertório nas escolas de samba, que vai nos pagodes, ligada às rodas de samba. Mulheres ligadas ao samba, a gente poderia citar Aracy de Almeida, talvez, mas que era mais ligada ao samba-canção, e, antes, Carmem Miranda, na coisa do samba-show. Isso é inaugurado pela Clara e se torna uma dinastia que segue até hoje. Então, depois vem Beth Carvalho, Alcione... E na geração mais nova, Mart'Nália, Teresa Cristina...”.
Bruno enaltece ainda Clara como uma cantora de massa. “E aí não só de samba. Até os anos 60, os grandes vendedores da indústria fonográfica brasileira eram todos homens. Daí, em 1974, com o disco ‘Alvorecer’, que traz ‘Conto de Areia’, um dos grandes sucesso de sua carreira ela passa a marca das 400 mil cópias, provando que mulher também vende disco. Foi a primeira vez que uma mulher ultrapassou esse número”, diz ele, lembrando que, em 1978, Maria Bethânia, por seu turno, bate a marca de um milhão de cópias. "Alcione e Beth vendem muito também nos anos 70, Gal Costa... Mas a primeira foi a Clara".
Em terceiro lugar, o pesquisador enaltece Clara como propagadora dos preceitos, costumes e características das religiões de matriz africana. “Acho importante, principalmente nos dias de hoje (citar esse ponto). Nos anos 70, começo dos 80, ela já tem um repertório imenso de músicas que falam de orixás, de rituais, que citam os nomes de entidades tanto da umbanda quanto do candomblé. E não só o repertório, também pela forma de se vestir, além das entrevistas, quando falava, por exemplo, de sua crença, de seu culto, de sua relação, por exemplo, com Vovô Maria Joana Rezadeira, que era da Serrinha, ligada ao Império Serrano, onde ia com muita frequência e com quem até fez um clipe, no começo dos anos 80. Nessa época, isso não era comum, havia muito preconceito. Ela teve uma importante na difusão de características das religiões de matriz africana. E o curioso é pensar como isso regrediu. Converso com cantoras da nova geração que dizem ser hoje mais difícil de cantar, para um público grande, músicas que falam de orixás, pois há um preconceito muito grande. A Clara uniu o país cantando pontos de umbanda, de candomblé, orixás. Vale dizer que, nos anos 70, o Martinho da Vila gravava uma coisa ou outra, pontos de umbanda, fez até muito sucesso com um. Mas a Clara, não, todo disco tinha um repertório ligado à umbanda e ao candomblé”.
Ao fim, ele explana: "São três aspectos de pioneirismo dela. A Clara é uma figura impressionante. É incrível como quase 40 anos após a morte continua com esse magnetismo. Aqui, no Rio, onde era ligada à Portela, ao samba, conheço poucas pessoas que continuem despertando tanta paixão após a morte".
Curta-Metragem
Por ora exibido apenas no Memorial Clara Nunes e participando de festivais, o curta “Clara Esperança” é fruto da admiração do diretor, Diego Alexandre, pela cantora, e que se potencializou quando ele conheceu Dona Mariquita, irmã mais velha da artista, e praticamente a mãe da guerreira. "A ideia do documentário surgiu quando eu era estudante de jornalismo na Universidade Federal São João del-Rei. Houve um processo de seleção para um projeto de extensão do curso de história que tinha uma parceria com o Memorial de Clara Nunes, em Caetanópolis. Ele selecionava bolsistas e mandava para a cidade natal da cantora para trabalhar na catalogação do acervo dela".
Diego acabou sendo selecionado. "Já era fã da Clara, por isso, aliás, quis participar do processo seletivo. Então, comecei a ter contato com a história dela e o acervo. E conheci Dona Mariquita. Por ela fiquei sabendo da história de como fundou a creche e o Memorial. No caso da primeira, vale lembrar que o maior sonho da cantora era ser mãe, mas não pode realizá-lo, pois não podia ter filhos. Já havia inclusive passado por três abortos espontâneos, não conseguia engravidar. No Natal de 1982, a cantora confessou à irmã que em cinco anos iria dar uma pausa na carreira, para abrir uma creche e cuidar de crianças, já que não poderia ter filhos".
Só que Clara Nunes morreu meses depois de falar isso. "E aí, a Dona Mariquita, ela levou adiante a ideia e no prazo que a Clara pretendia, inaugurou a Creche Clara Nunes. O Memorial foi (aberto) anos depois (2012), Em parceria com a Universidade de São João del-Rei, ela conseguiu inaugurar. O espaço abriga todo o acervo da Clara, que era uma artista preocupada em preservar a memória dela, guardava tudo relacionado à memória dela, por isso, há esse acervo enorme lá. E eu conhecendo a história da luta da Dona Mariquita, para manter essas instituições, resolvi documentar tudo aquilo. Então, fiz as entrevistas com ela e com pessoas que conviveram com a cantora na infância, em Caetanópolis. E o documentário fala da relação entre as duas e o trabalho de preservação da memória que Dona Mariquita fez”, descreve ele.
Em tempo: Diego Alexandre é cineasta e jornalista. Como assistente de direção, trabalhou com cineastas como Murilo Salles, Luiz Carlos Lacerda, Natara Ney e Hsu Chien. É diretor e produtor dos documentários "Só Para Loucos" (2015) e “Clara Esperança” (2022), vencedor do prêmio de Melhor Cineasta Brasileiro no BIMIFF - Brazil International Monthly Independent Film Festival e ganhou também, este ano, pelo júri popular, o ROTA - - Festival de Roteiro Audiovisual, na categoria melhor roteiro documentário. Vale dizer que, no ano passado, seu roteiro de curta-metragem "Vida Boneca" tambébm foi o grande vencedor do V ROTA, dentre 832 roteiros inscritos. No mesmo ano, foi convidado a se tornar membro da ABRA - Associação Brasileira de Autores Roteiristas e fundou sua produtora, a Amuleto Filmes.
Páginas dedicadas à guerreira
Nome à frente da página Clara.Claridade, criada em 2017, a universitária carioca Joice Martins, 23, conta que sua admiração por Clara pode ser creditada a tudo o que ela representa para a música popular brasileira. Mas não só. "Toda a luta dela, o quanto foi persistente no plano de ser cantora, nessa missão, como ela dizia, que teve como artista, intérprete. E como mulher ela também me inspira muito. Muito me encanta o quanto era humana, generosa, o quanto amava as pessoas, em particular, as crianças. O carinho com os fãs, sempre simpática, sempre sorridente".
Ela também cita o aspecto cuidador da artista. "Cuidava muito dos irmãos (com ela, eram sete filhos, ao todo). Isso me inspira a tentar ser como ela, um ser humano melhor, admite. Joice emenda que, com o perfil, quis também "fazer a minha parte". "Para que os jovens, as pessoas da minha geração, dos 20 e poucas, que nem sonhavam em nascer quando ela infelizmente nos deixou, saibam a importância que ela tem. Uma das mulheres que mais venderam discos, liderava paradas musicais, as vendas de discos nos anos 70 e 80, e isso abriu portas para nós, mulheres. Esse empoderamento foi de extrema importância. Hoje há várias cantoras aí, no top Brasil e global do Spotify, e lá atrás, Clara abriu essas portas, por meio da venda de discos. Então, devemos agradecer a ela e às susas demais colegas, mulheres que estavam nesta caminhada aí".
A estudante enfatiza que, quando criou o perfil, havia dois outros, porém, um inativo. "Mas acho que quanto mais fãs homenageando-a, melhor. Há muitos cantores que têm várias páginas dedicadas a eles, mas a Clara, até então, só esses dois. Com a minha, ficaram três, e depois surgiram outros. Hoje temos vários, e que bom, pois a maioria foi feita por pessoas jovens, o que muito me alegra. No meu caso, gosto muito de divulgar o trabalho do Memorial, na cidade natal dela, que guarda o acervo. O pessoal lá, uma equipe de historiadores, se empenha em manter o acervo conservado. É todo um trabalho voluntário, não há uma fonte de renda, é doação de fãs, vizinhos, família, dos próprios historiadores. Mesmo assim, muita gente não o conhece. Temos seguidores de todo o Brasil, até de outros países, e há inclusive famosos que seguem a página. Por isso tentamos divulgar o trabalho em Caetanópolis, para que outras pessoas possam ajudar".
Em tempo: Joice conheceu o canto potente de Clara Nunes por meio do avô, já falecido. "Ele tinha vários LPs dela e, ao ouvir, fiquei encantada, achei muito especial. Eu, criança (não me lembro a idade certa, talvez seis, ou até mesmo ainda na barriga da minha mãe, quando ela estava me esperando), não entendia muito, mas de alguma forma aquilo mexeu comigo. Ele tinha um volume enorme de discos, mas gostava mais dos dela, assim como minha avô. Me recordo de ambos sempre demonstrarem muita tristeza ao falar da morte dela, precoce e repentina. Então, cresci ouvindo o nome dela. E quando adolescente, por conta própria, fui pesquisando, ouvindo as músicas dela", rememora.
Influência
A cantora gaúcha Glau Barros é uma das vozes que sobem ao palco hoje, Brasil afora, para protagonizar um show dedicado a Clara Nunes por conta do marco dos 80 anos de nascimento. "Tenho 52 anos e a minha admiração por ela se iniciou quando eu era ainda bem pequena. Minha família me apresentou à música dela através dos discos, e eu a via na TV (tinha entre 4, 5 anos), quando lançou o seu grande sucesso, 'Conto de Areia'. A partir dali foi crescendo a minha admiração por essa mulher que, em plena ditadura, cantava um Brasil negro, trazia à tona as religiões de matriz africana, a questão das desigualdades... Tinha muito disso nas letras que ela escolhia para interpretar. A escolha do repertório dela era muito pertinente, muito forte, potente, para a época. E ela também bancou ser uma cantora de samba, uma vez que a gravadora queria mais ecletismo. Mas ela queria muito cantar o samba, as desigualdades desse Brasil tão diverso. A minha admiração vem dessa potência, dessa força de trazer um Brasil tão rico para seu trabalho".
A música que Glau diz mais gostar é "Minha Missão", samba escrito por João Nogueira e Paulo César Pinheiro. "Ali, ela diz tudo o que um artista sente, então fico muito comovida quando a ouço cantando esse samba. E acredito que muitas cantoras da minha geração se identificam totalmente. Por aqui ali está dito que o canto é uma missão e que o artista está a serviço do seu público, então, é muito forte". A intérprete também salienta as tantas músicas que trazem letras, melodias e arranjos as religiões de matriz africana. "Até hoje ela é lembrada por 'Canto das Três Raças', 'Ijexá', assim como por 'Conto de Areia' e 'O Mar Serenou', que trazem a questão do mar, dos orixás.. Acho que esses sambas que têm essa temática da africanidade, dessa diversidade do nosso povo, são as que mais representam Clara Nunes, nossa eterna guerreira mineira".