“Um barco um porão/ Um porão uma carga/ Uma carga uma história”. Os versos, inscritos em letras douradas em blocos de madeira queimada que traçam a silhueta do fundo de uma embarcação, compõem o poema apresentado na obra “O Barco | The Boat”, de 2021, uma narrativa visual e performativa que a artista Grada Kilomba traz pela primeira vez ao Brasil, abrindo a temporada de 2024 de novas exposições no Instituto Inhotim.

Além deste trabalho, que abre um espaço de diálogo com o passado e o presente por meio de frestas abertas pela prática subversiva de contar histórias, o maior museu a céu aberto da América Latina, localizado em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), recebe mais duas mostras nesta nova leva de exposições a partir deste sábado (13), incluindo a experiência imersiva “Esconjuro”, que reúne obras comissionadas do artista Paulo Nazareth, propondo uma conversa simbiótica entre arte e natureza, que reflete território e transitoriedade.

Complementando a relação de novidades da temporada 2024, o Inhotim apresente ainda a mostra coletiva “Ensaios sobre paisagem” (2024), que congrega trabalhos dos artistas Aislan Pankararu, Ana Cláudia Almeida, Castiel Vitorino Brasileiro e Zé Carlos Garcia, na Galeria Lago, propondo uma investigação sobre a paisagem, não apenas como um espaço físico, mas como um território de expressão e significados múltiplos.

O Barco

Em “O Barco | The Boat”, que já circulou pelo mundo, mas seguia inédita no Brasil, Grada Kilomba convoca a uma jornada escultórica e performática que se estende por mais de 220 m², com 134 blocos de madeira queimada que traçam a silhueta do fundo de uma embarcação. A instalação, que ocupa a Galeria Praça do Inhotim, é ancorada por 18 blocos de madeira queimados ritualisticamente, sobre os quais repousa um poema dourado de Kilomba, traduzido para as línguas iorubá, kimbundu, crioulo cabo-verdiano, português, inglês e árabe da Síria.

Grada Kilomba, artista portuguesa que estreia exposição no Inhotim
Grada Kilomba em frente à obra “O Barco | The Boat”, que ocupa a Galeria Galpão do Inhotim

Acompanhando a instalação, uma performance dirigida pela própria Kilomba se desenrola em três atos em Inhotim. O primeiro ato, marcando a inauguração, conta com um ensemble de cantores de gospel e ópera, bailarinos clássicos e percussionistas de Lisboa, que se apresentam no sábado (13) e domingo (14) – o primeiro dia, para convidados, e, o segundo, para o público geral, sendo necessária a retirada de ingressos na própria galeria.

No formato atual, a apresentação, que parece conduzir o espectador a uma espécie de transe, tem duração de 60 minutos e conta com um coral com 16 integrantes e uma dupla de bailarinos, que, juntos, entoam tanto palavras, em diferentes línguas, quanto onomatopeias, sendo acompanhados por uma banda, com três instrumentistas, que usam majoritariamente a percussão, além de um de sopro, que reproduz o som de uma sirene.

Os artistas, durante a performance, interagem com a estrutura do “barco”, se posicionando ora em uma ponta, ora em outra. Nos atos subsequentes, a artista pretende colaborar com artistas de Brumadinho e região, continuando a explorar as camadas de sua obra.

“Esta obra tem muitas camadas e começou com uma grande pesquisa, que começa a ficar visual”, explica a artista nascida em Lisboa e radicada em Berlim, sendo conhecida por seu trabalho que explora memória, trauma e pós-colonialismo, utilizando uma variedade de meios – performance, leitura cênica, vídeo e instalações escultóricas e sônicas – para questionar e desafiar conceitos de conhecimento, violência e repetição.

Performance em O Barco (2021), Grada Kilomba, em exibição na Galeria Galpão em Inhotim a partir de 13/04
Performance em O Barco (2021), de Grada Kilomba, em Inhotim

Sobre a concepção de “O Barco | The Boat”, Kilomba detalha que levou algum tempo até encontrar a matéria-prima ideal para construir a instalação – a madeira –, pontuando que o processo de montagem foi “quase performático”, com as peças sendo banhadas no fogo para que a “mágica” acontecesse. Depois, diz, veio a busca pela geometria, reproduzindo a silhueta de uma embarcação. 

O próximo passo foi trazer para a obra os elementos da música e da dança, dialogando com a ideia do barco como um objeto vivo, como ela assinala nos versos do poema inscritos nas peças de madeira: “Uma história uma peça/ Uma peça uma vida/ Uma vida um corpo/ Um corpo uma pessoa/ Uma pessoa um ser/ Um ser uma alma/ Uma alma uma memória”.

“É uma forma de contar a história, de narrar uma parte da história que estava apagada”, diz, argumentando que é papel do artista dar voz ao que está silenciado. Ela lembra que as narrativas oficiais associam, de forma quase infantil, as grandes embarcações do século XVII a uma ideia de glória e triunfo, ligadas a noção de “descobrimento”. Noções que escondem uma parte fundamental – e dolorosa – da história da humanidade. “Uma alma uma memória/ Uma memória um esquecimento/ Um esquecimento uma ferida/ Uma ferida uma morte”, lê-se em outro trecho da composição poética.

Bailarinos fazem performance e interagem com a obra O Barco, de Grada Kilomba
Bailarinos interagem com a obra O Barco, de Grada Kilomba, durante performance

“Toda arquitetura do barco é muito minuciosa, pensando em como corpos africanos eram acomodados nesses navios de tráfico de pessoas escravizadas – estamos falando de crianças, mulheres e homens –, que tinham espaço máximo de 20 cm (entre o corpo e o teto, considerando que essas pessoas eram transportadas deitadas no subsolo dos navios)”, aponta Kilomba, ao explicar que a ideia central da instalação, meticulosamente elaborada, é revelar a arqueologia dos espaços criados no fundo das embarcações que transportaram milhões de africanos escravizados. A obra, portanto, estabelece um diálogo entre o passado e o presente, entre a história e a contemporaneidade. “É quase incompreensível que, por tantos anos, isso tenha acontecido”, reflete. 

Ao mesmo tempo, destaca a artista, “O Barco | The Boat” incorpora uma prática subversiva de contar histórias, onde imagens imersivas e poéticas dão corpo, voz, forma e movimento aos seus escritos, trazendo à luz memórias que estavam aprisionadas nos porões da história oficial. “Uma morte uma dor/ Uma dor uma revolução/ Uma revolução uma igualdade/ Uma igualdade um afeto/ Um afeto a humanidade”, registra o poema.

Território e deslocamento

Já na exposição “Esconjuro” (2024), Paulo Nazareth apresenta, na Galeria Praça e em outros espaços do museu, uma mostra monográfica que, se estendendo por 18 meses, vai se transformando com as estações do ano (a exposição começa no outono e passará por reformas em cada estação subsequente), provocando reflexões sobre a terra e seus ciclos, as transformações ambientais e as práticas de exploração e disputa territorial – temas que são caros ao trabalho do artista, cuja obra é profundamente enraizada nas interseções de história, território e deslocamento.

Paulo Nazareth, em frente a instalação de simulacros de bananas de concreto, que integram a instalação Sambaki II, ocupando a Galeria Praça, em Inhotim
Paulo Nazareth na Galeria Praça, onde expõe obras da mostra Esconjuro

O artista, baseado em Santa Luzia, na RMBH, explica que o nome da mostra é, por si, a própria obra. “É imaterial. Cada vez que pronunciamos ‘esconjuro’, a performance acontece”, avalia. O Inhotim, aliás, define a palavra como possuidora de vários significados: “Ao mesmo tempo em que é encantamento, também quer dizer maldição e exorcismo. Compartilhada entre diferentes idiomas, habita o linguajar comum de benzedeiras, rezadeiras e pessoas do axé, pois é associada ao afastamento de energias negativas e ao livramento de algo ruim”.

Mais que uma exposição visual, portanto, Nazareth defende que as instalações devem ser entendidas como uma mostra viva e em diálogo com o público, os funcionários do museu e a comunidade local, além de transcender as fronteiras entre seres viventes e não viventes.

Integram este novo trabalho, por exemplo, as obras “Casa de Exu” (2015-2024) e o “Bananal” (2024), em que a arte serve a diferentes formas de vida e convida a natureza a participar da experiência artística. A primeira, localizada nas proximidades da Galeria Praça, é interpretada como oferenda e proteção e apresenta uma construção de alvenaria que exala cheiro de cachaça de cana-de-açúcar, enquanto a última, perto da Galeria Marilá Dardot, é uma obra-plantação com uma bananeira fundida em bronze no centro.

Obra Casinha de Exu, que integra a mostra Esconjuro, de Paulo Nazareth
Obra Casinha de Exu, que integra a mostra Esconjuro, de Paulo Nazareth

Já em “Sambaki II”, esta localizada na Galeria Praça, o artista cria simulacros de banana-prata de concreto, agrupados em um grande monte e ladeados por escoras de madeira enquanto dois alto-falantes reproduzem o som de uma conversa em crioulo, capturada na Vila Perus, em São Paulo, com trabalhadores imigrantes da Guiné-Bissau, ressoando memórias e experiências dos ciclos de exploração, marcando o território com monumentos e ruínas.

Durante uma conversa expositiva sobre a empreitada artística que agora inaugura, Nazareth expôs que a banana aparece em suas obras como um signo desse elo entre território e transitoriedade. “Ela é mais que o alimento. É uma planta que veio de Ásia, que ganhou nome em África e, nessa obra, ganha a forma a partir de um mineral – o bronze –, que sai daqui e vai para outros territórios, incluindo a Ásia”, analisa, dialogando com o texto-legenda da obra “Sambaki II” (2024), onde se lê: “A bananeira é uma planta que tem origem na Ásia, mas teve larga difusão entre as colônias europeias, tornando-se base para a alimentação e um dos principais signos desse período, dando também origem à expressão ‘Repúblicas das Bananas’, termo pejorativo usado para descrever os primeiros regimes de governos independentes da América Latina”.


Simulacros de bananas de concreto na Galeria Praça, que integram a instalação Sambaki II, parte da exposição monográfica Esconjuro, de Paulo Nazareth
Elementos da obra Sambaki II, parte da exposição Esconjuro, de Paulo Nazareth

Beatriz Lemos, curadora coordenadora do instituto, por sua vez, lembrou que as transformações que “Esconjuro” vai passar ao longo do período em exposição dialogam com algo comum a diversas periferias latino-americanas: casas em obras constantes, ganhando puxadinhos e vislumbrando adaptações e melhorias, sempre em processo. As reformas, então, definem a modificação do espaço, enquanto as estações são adotadas como maneira de marcar o tempo do diálogo com a natureza, com a terra e o cultivo que alimenta.

Interseção entre natureza e arte

Por fim, a exposição "Ensaios sobre paisagem" – que, apesar do nome, não possui obras que reproduzem paisagens – apresenta, na Galeria Lago, artistas que ampliam as discussões sobre a natureza e suas interações com a humanidade.

Caso de Aislan Pankararu, que realiza uma produção que converge ciência, o bioma de sua terra natal, Petrolândia, em Pernambuco, e a ancestralidade de seu povo, refletindo sobre a relação entre o conhecimento tradicional e a compreensão científica e pensando a natureza como um ente vivo. A carioca Ana Cláudia Almeida, por sua vez, explora a linguagem pictórica e o desenho para repensar as ideias de natureza. Suas pinturas são experimentações que jogam com o tempo, a ação e a paisagem, desafiando os significados de artificialidade e normatividade.

Exposição Ensaios sobre Paisagem, com obras dos artistas Aislan Pankararu, Ana Cláudia Almeida, Castiel Vitorino Brasileiro e Zé Carlos Garcia. Em exibição na Galeria Lago
Exposição Ensaios sobre Paisagem, em Inhotim

Já Castiel Vitorino Brasileiro, de Vitória, no Espírito Santo, aborda a transmutação e a metamorfose em suas séries fotográficas, cartografando um processo de mutação da natureza como imagens de cura, fazendo um convite à reflexão sobre a capacidade regenerativa e transformadora da natureza. Por fim, Zé Carlos Garcia, de Aracaju, em Sergipe, apresenta esculturas totêmicas que utilizam materiais e elementos orgânicos, inspirados na paisagem nordestina e seus vínculos arqueológicos, possuindo formas híbridas, esculpidas em madeira de manejo florestal.