Nos últimos anos, muitos artistas lançaram autobiografias, algumas bastante elogiadas. Rita Lee, Fernanda Montenegro, Jô Soares, Eric Clapton e Keith Richards são alguns que se aventuraram em expor detalhes de suas vidas para o público. O que leva um artista a lançar uma autobiografia? Os motivos são muito pessoais: pode ser uma necessidade de expurgar dores e traumas, uma necessidade de revisitar e eternizar memórias ou só uma viagem de ego. No caso de José de Abreu, o motivo foi só um: solidão.
Em 2014, recém-separado e com férias que durariam um ano na Globo, o ator rumou para a França, onde comprou um apartamento em Paris. No “quarto, sala, cozinha e banheiro”, se viu diante do espelho. Completamente sozinho, começou a escrever de maneira atabalhoada, sem muitos critérios. José de Abreu detesta mesmice. Meses depois, ele decidiu morar na Grécia, mais precisamente na ilha de Andros. Lá, entre muitas leituras, a escrita ganhou disciplina. A temporada na Europa, a qual o ator se refere como uma grande aventura, acabou durando dez meses. De volta ao Brasil, entre intervalos e trabalhos na TV e no teatro, Zé continuou contando sua vida em milhares de palavras. “Ao longo de quatro ou cinco anos escrevi 900 páginas”, diz, em conversa com o Magazine.
“Um dia eu botei fim. Tive que fazer algumas atualizações, mas um dia eu falei ‘chega!’”, ele diz, sem deixar de mencionar a importante parceria com a consultora editorial Rosana Caiado. Após uma série de revisões e cortes de trechos repetidos, a conclusão do projeto ocorreu já durante a pandemia, mas o lançamento foi adiado algumas vezes. Com prefácios do diretor de teatro Luís Artur Nunes e do ex-presidente Lula, “Abreugrafia” (Editora Ubook) chega agora às livrarias aproveitando a estreia da novela global “Um Lugar Ao Sol”, trama das 21h, na qual Zé interpreta o milionário Santiago.
O título do livro, que ganha versão em e-book e audiobook, com narração do próprio ator, faz um jogo de palavras com o método de tirar chapas radiográficas dos pulmões e diz muito sobre o processo de escrita e do quanto José de Abreu se revelou neste relato autobiográfico, fatiado em dois volumes. No “Livro I – Antes da Fama”, o ator volta à infância e adolescência no interior de São Paulo, em Santa Rita do Passa Quatro, aborda a mudança para a capital paulista, a morte do pai delegado, o abuso sofrido no Seminário Menor Maria Imaculada, em Ribeirão Preto, quando cursava o segundo ano do antigo ginásio.
O início como ator e agitador cultural e a luta contra a ditadura militar - preso no famoso congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968, Zé optou pelo autoexílio na Europa por alguns anos - também ganharam destaque.
No “Livro II – Depois da Fama”, o ator fala como chegou à Globo, em 1980, e revela detalhes de sua bem-sucedida carreira de mais de 50 anos na TV, no teatro e no cinema. A trágica morte do filho Rodrigo, em 1992, o ativismo político, os personagens icônicos, os amores e episódios ora hilários, ora baixo-astral, também não escapam às impressões íntimas e sinceras do artista.
“Em essência, o que o leitor vai encontrar é um ser humano à procura da vida, do que é viver, essa coisa que o Marcello Mastroianni disse que não tem ensaio, você está estreando todos os dias”, comenta o ator, que completou 75 anos em maio.
“Essa história de morar fora do Brasil tem a ver com isso, é sempre uma busca pela nova experiência. Depois de muitos anos nessa vida de famoso, fui morar na França, onde me sento em um banco e como um sanduíche sem ser reconhecido. Na ilha grega eu sou ninguém, entro no botequim, vou na cozinha do dono do restaurante e tomo um trago com o cara. Não quero ser uma pessoa diferente, isso é ruim para a cabeça”, explica. Pouco antes do estouro da pandemia, o ator e a esposa Carol Junger se mudaram para Auckland, na Nova Zelândia. Em março deste ano, o casal retornou ao Brasil para as gravações da novela.
Após lançar o livro em São Paulo e no Rio de Janeiro, José de Abreu e Carol vão, no fim deste mês, tomar o caminho de Lisboa. Em Portugal, onde é muito conhecido, o ator pretende divulgar o livro. A temporada na “terrinha” deve durar seis meses, mas tudo depende da campanha política em 2022. Crítico ferrenho de Jair Bolsonaro e filiado ao PT, ele será, se o curso dos meses não trouxer novidades, candidato a deputado federal. “Aceitei um pedido do partido. É um chamado de cidadania, não quero ficar minha vida lá. Seja qual for o candidato vitorioso, e espero que seja o Lula, vai herdar um país destroçado”, comenta.
Ao fazer a inevitável retrospectiva de seus 75 anos, Zé de Abreu percebeu que sua vida foi mais preenchida por momentos de alegria e felicidade do que de tristeza. Sem querer soar nostálgico, ele diz que as boas recordações são muito mais numerosas que as más: “A vida foi muito boa comigo. Sempre fui porra louca, nunca tive medo de arriscar. Acabou que deu certo”.
Milionário na novela das 21h
No ar em “Um Lugar Ao Sol”, José de Abreu interpreta Santiago, empresário que transformou o armazém herdado do pai na maior rede de supermercados do Rio de Janeiro, e a quarta do país. “Ele é fanático por literatura, adora Machado de Assis. Um cara extremamente justo, um milionário do bem”, pontua o ator.
A trama da Globo conta a história de dois irmãos gêmeos, vividos por Cauã Reymond, criados em realidades opostas. Gravada já durante a pandemia, a novela, escrita por Lícia Manzo, vai ao ar totalmente pronta, num formato inédito na TV brasileira. “Os capítulos são menores e as gravações foram mais lentas. Normalmente, você grava cerca de 30 páginas no estúdio, estávamos gravando 10. Isso também permitiu um capricho maior. E o elenco é muito bom”, diz o ator. Nomes como Marco Ricca, Marieta Severo, Andrea Beltrão, Daniel Dantas, Andréia Horta, Alinne Moraes, Danton Mello e Ana Beatriz Nogueira estão no folhetim.
Depois de 40 anos na Globo, em maio de 2020, José de Abreu e a emissora não renovaram o contrato. O ator não faz muitos planos, mas deixa as possibilidades no ar: “Tem o streaming, o mercado está muito aquecido. Tem o teatro também”. Zé foi convidado para fazer uma novela em Portugal, mas a história não avançou. Outros projetos também já pintaram. Por enquanto, pelo menos a curto prazo, o ator vai pensar no futuro, sem pressa, tendo as ruas lisboetas como inspiração: “Não dá para pensar em parar, artista não tem isso. A gente trabalha enquanto tem trabalho”.
“Abreugrafia”
Os volumes “Livro I – Antes da Fama” (408 págs, R$ 69,90) e “Livro II – Depois da Fama” (388 págs, R$ 69,90) já chegaram às livrarias físicas e virtuais, e também podem ser comprados, juntos, com 20% de desconto na store.ubook.com. Assinantes da Ubook garantem 50% de desconto no site da editora, onde as versões e-book e audiobook estão disponíveis. “O primeiro livro eu gravei na Nova Zelândia sozinho. O segundo, já narrei no Brasil, nos estúdios da UBOOK. Tentei narrar como se estivesse sentado no sofá da sala, contando a minha história para um amigo, em um tom mais intimista. Foi uma experiência única”, diz o ator.
Confira trechos de “Abreugrafia”:
“Livro I – Antes da Fama”, capítulo 14
“Estava amanhecendo quando ouvimos a primeira rajada de metralhadora. Imediatamente, veio a ordem de não resistir. Eles eram muitos e estavam fortemente armados, seria uma carnificina. Outras rajadas. E começaram a invadir o sítio. Os soldados também não sabiam o que fazer. Pediam para levantarmos as mãos, para não corrermos, “está todo mundo preso”. Ninguém ali tinha forças para reagir depois de três dias de fome, frio e sono. Sem banho. Com barro até as orelhas. Para muita gente, a prisão foi um alívio. Fim do pesadelo. Zé Dirceu foi o primeiro a ser reconhecido. Acho que o Travassos também, pouco depois. Mas o Vladimir e o Jean Marc não foram. Eles nos fizeram formar duas filas indianas na estrada e começamos a caminhar, os estudantes no meio e os soldados armados nas laterais da estrada. Pelo tamanho da fila, imaginei que éramos muitos. Só soubemos quantos quando saiu nos jornais: 756 estudantes do Brasil inteiro presos. Toda a liderança nacional e todos os líderes estaduais e municipais estavam no Congresso. Portanto, presos. Era sábado, Dia das Crianças, 12 de outubro de 1968.”
“Livro II – Depois da Fama”, capítulo 5
“Numa manhã, no Hotel Tropical, estávamos todos do elenco e da equipe tomando o café da manhã quando um dos garçons me chama até o balcão para atender um telefonema. Era o dr. Naum, pai da Nara. Estranhei, havia tempo que eu me separara dela e depois disso nos falamos poucas vezes. Ele me disse, com seu jeito sério e sem preâmbulos: — Zé, seu filho Rodrigo sofreu um acidente. Parece que caiu do prédio. Está no hospital. — Dr. Naum, o Rodrigo morreu? — Morreu, Zé. Soltei um grito, todos correram para ver o que era. Jussara Freire chegou primeiro, contei pra ela e comecei a passar mal. Houve uma saída de giro rápida e quando me dei conta havia uma roda de atores e membros da equipe rezando um Pai Nosso puxado pela Jussara. Logo alguém me deu um comprimido e eu saí do ar. Não me lembro de mais nada, só de estar num avião voltando para o Rio com o sobrinho do sr. Adolpho Bloch, o Oscar Bloch, que volta e meia me dava um comprimido de algum calmante.”
“Livro II – Depois da Fama”, capítulo 20
“Costumo dizer que prefiro fazer vilão, porque mocinho tem que estar sempre com o cabelo penteado, camisa passada, tudo nos trinques. E, como já disse antes, fazer maldades na ficção me poupa de fazê-las na vida real: preencho minha cota e adianto meu carma.”