“Basta abrir a geladeira que já caem cinco lives”. A piada que circula nas redes sociais descreve com perfeição o atual momento: o boom das transmissões online. Potencializadas pelo isolamento social, uma recomendação da Organização Mundial da Saúde e de alguns órgãos governamentais diante da pandemia do novo coronavírus, as apresentações na internet se tornaram ferramentas indispensáveis para músicos e musicistas, atores e atrizes, filósofos populares e pensadores, entres outros produtores de conteúdo. No entanto, essa roda, agora acelerada, não começou a girar neste cenário.
“É preciso deixar claro que as lives, evidenciadas em massa nas últimas semanas, a partir de um movimento musical puxado pelos artistas sertanejos, já eram uma realidade no universo dos influenciadores digitais e, consequentemente, no da sua audiência”, garante Júnior César, que há quatro anos fechou uma porta – a de uma assessoria de imprensa em Belo Horizonte – e abriu outra – a da Brasilera Digital, empresa localizada em São Paulo e que faz a gestão de carreira de diversos youtubers, como Camila Loures (11 milhões de inscritos) e Viih Tube (10 milhões de inscritos).
De acordo com Júnior, a utilização das lives “é apenas uma fatia do bolo de ativações” possíveis no universo digital. “A grande massa só foi ter um proveito maior das lives recentemente, mas o público digital já estava familiarizado com o formato havia tempos”, explica.
O empresário destaca que, recentemente, a youtuber Camila Loures reuniu entre 40 mil e 80 mil pessoas simultaneamente durante uma live na rede social Instagram. No dia 2 de maio, um dia após o Super Notícia completar 18 aninhos, ela fará outra transmissão ao vivo, mas, desta vez, no YouTube e na companhia de outros influenciadores.
Para Carlos Giusti, sócio da empresa de consultoria e auditória PwC, que fez um levantamento sobre a projeção de usuários em streaming de música e TV até 2023, assim como de pessoas que terão acesso à internet móvel, o trajeto até a utilização das ferramentas de transmissão ao vivo já era natural, mas, por conta da pandemia no novo coronavírus, ela foi acelerada.
“Amanhã, a bilheteria dos shows e dos teatros vai voltar, mas teremos uma nova alternativa, que é a live streaming. Esse modelo veio para ficar, mas é preciso entender que o formato da live streaming de hoje não é definitivo. Em três semanas, ela já mudou, assim como o formato, a linguagem e o modelo comercial”, destaca o especialista. O grande X da questão, segundo ele, será a compreensão do que interessa ou não ao público e quais são as necessidades do consumidor.
Júnior César concorda com Giusti e vai além, observando que a explosão de lives nas últimas semanas – e que deverá perdurar por mais alguns dias, caminhando no ritmo da contenção da pandemia que assola todo o mundo – tira até os influenciadores digitais, antes únicos protagonistas da plataforma, da área de conforto. “As lives vão perdurar, é um caminho agora sem volta e que todos nós, independentemente dos mercados, teremos que reaprender a utilizar. Se eu já usava em um formato com os influenciadores e com a minha audiência, a partir de agora, eu preciso ampliar os horizontes e entender como atingir as grandes massas, que, se não consumiam o conteúdo dos youtubers antes, já são adeptas das lives”, explica o fundador da Brasilera Digital.
Convergência de mídias
As lives dos artistas sertanejos na plataforma YouTube tiraram o sono até mesmo das emissoras. Com suas produções inéditas paralisadas por conta do isolamento social, alguns canais, como a Globo e a RecordTV, principais concorrentes no cenário brasileiro, incluíram em suas programações shows ao vivo – a gigante carioca chegou a fazer uma live original com uma apresentação do Rei Roberto Carlos, no domingo, dia 19 de abril. Boninho, responsável pelo “Big Brother Brasil”, foi o diretor.
“As emissoras aglutinaram as lives em suas programações para não perder audiência e, claro, dinheiro”, defende Rafael Angeli, especialista e professor de marketing digital. “Se você observar o horário de uma live da Marília Mendonça, por exemplo, o número de pessoas conectadas era muito maior do que o público vendo televisão. Aquilo ali era uma novidade”, completa. A apresentação de Marília, conhecida como “Rainha da Sofrência”, foi realizada no dia 8 de abril e teve mais de 3,2 milhões de acessos simultâneos.
Para Angeli, o modelo tradicional das emissoras de televisão está fadado ao fracasso – o que não quer dizer, em nenhum momento, que o “instrumento televisão” esteja com seus dias contados – um ótimo exemplo é o rádio, que soube se reinventar e, hoje, é ouvido por meio de aplicativos. “As emissoras trabalham com uma programação fixa, que teve que ser interrompida por causa do novo coronavírus. Com isso, elas tiveram que se adaptar a algo que ainda estava em fase de estudo, como é o caso do GloboPlay. A Globo já vinha fazendo esse movimento de digitalização das suas produções, focando a transmissão via outros aparelhos”, explica ele.
“Esse movimento de transição na TV, por exemplo, já vinha acontecendo. Os streamings são prova disso: veículos que se adéquam a uma demanda. É preciso entender que as pessoas não conseguem mais acompanhar uma grade de TV, que dá a sensação de prisão, elas querem consumir o conteúdo, sim, mas no horário, na forma, no aparelho e da maneira como bem entenderem”, garante Júnior César. “O poder foi descentralizado”, completa ele, lembrando que, para ele, ter deixado o formato tradicional de assessoria para trás foi um movimento de convergência: “Absorvi teorias da comunicação analógica, assim como a prática, e aplico todas elas no universo digital”, finaliza o empresário.
Além disso, as lives têm ainda o viés democrático. “Várias pessoas na sociedade que não têm condições financeiras de ir em um show físico, com a internet que possuem, conseguirão ter acesso aos seus artistas prediletos”, alerta Angeli, lembrando que, semelhantemente, as lives ocupando a programação das emissoras abertas possibilita ainda que outras pessoas, sem acesso a shows e internet de boa qualidade, possam aproveitar as apresentações.
Desafios de mercado
Beber da água das lives nesta altura do campeonato, quando as pessoas permanecem em casa devido ao isolamento social provocado pelo novo coronavírus, “é fácil, é mole, é lindo”, parafraseando Gabriel Gava. O difícil, mas não impossível, que isso fique bem claro, é fazer essa conversão sem perdas e, claro, alavancando ainda mais a audiência e a interação do público.
“Tem experiências presenciais que a live não alcança, mas ela entrega algumas coisas que nenhum show entrega. Com criatividade, vamos sacar novos modelos de negócios e de monetização, como as emissoras transmitindo lives com cotas de patrocínios vendidas”, atesta Carlos Giusti, da PwC Brasil.
Segundo Angeli, o legado das lives ficará, e os artistas – músicos, principalmente – terão que saber aproveitar o que foi construído. “Depois que terminar a pandemia, as pessoas estarão mais tímidas. Não vamos retomar de imediato a cultura de sair para assistir a um show. O artista vai ter que manter esse ritmo e continuar a fazer streaming. Para os artistas de grande porte, o patrocínio é mais fácil para esse tipo de ação”, revela ele, lembrando que, no caso de comerciais em lives, há nas plataformas regras a serem seguidas. Para fugir dos limites, o ideal, segundo o especialista, é que o artista adquira um formato livre de transmissão.
No campo dos influenciadores digitais, os desafios são semelhantes. “Neste momento, por conta da pandemia, vivemos uma grande reinvenção de todos os setores do mercado. E, se alguém tinha alguma certeza, a única certeza agora é que não há certeza de nada. No campo dos influenciadores, também não existe uma fórmula mágica – a pessoa terá que ser referência”, finaliza Júnior.
De olho no mercado, Júnior, da Brasilera, cita ainda que o diferencial do momento é a relevância – não basta ser famoso e ter audiência. “É preciso ter relevância com o público”, encerra.