História

Livro traça perfil de 15 mulheres símbolos da luta contra a ditadura militar

Heroínas Desta História joga luz em personagens que perderam familiares no período e têm uma vida dedicada à busca por memória, verdade e justiça

Por Bruno Mateus
Publicado em 14 de março de 2020 | 04:50
 
 
 
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O pensador irlandês Edmund Burke (1729-1797) escreveu: “O povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la”. Quando esse necessário exercício de memória nos escapa, as consequências atravessam gerações. A reparação, a busca por verdade e justiça e o escancaramento de trajetórias marcadas pela barbárie - mas, sobretudo, pela coragem de enfrentá-la – são o norte de um trabalho que nasce justamente para impedir que um recente capítulo esteja condenado a cair no esquecimento.

“Heroínas Desta História – Mulheres em Busca de Justiça por Familiares Mortos pela Ditadura”, que já está nas livrarias, joga luz na trajetória de 15 personagens que tiveram companheiros, filhos e irmãos assassinados brutalmente pela ditadura militar (1964-1985).

Quinze autoras, entre elas as jornalistas Miriam Leitão, Marina Amaral e Laura Capriglione, foram responsáveis por revelar, em 400 páginas, a bravura que não sucumbe à dor de operárias, indígenas, advogadas, donas de casa e professoras. A produção, parceria entre Autêntica Editora e Instituto Vladmir Herzog, teve início em 2018 e contou com uma equipe inteiramente feminina.

Segundo as organizadoras Carla Borges e Tatiana Merlino, o longo processo de pesquisa levou em consideração alguns critérios, como buscar um recorte nacional e que as perfiladas ainda estivessem vivas, para que o projeto fosse uma forma de homenagem ainda em vida a essas mulheres, como Clarice Herzog, Eunice Paiva, viúva do deputado cassado Rubens Paiva, Clara Charf, companheira de Carlos Marighella, e a cacica xavante Carolina Rewaptu. 

“É um recorte inédito sobre como a violência de Estado atingiu de forma brutal essas mulheres”, diz Tatiana. “O livro as coloca nesse lugar de protagonistas. A ideia não é chocar e paralisar, mas inspirar e colocar as pessoas em ação”, completa Carla.

Um mergulho profundo em memórias ainda dolorosas e “enraizadas num emaranhado de injustiças”. Esse foi o sentimento da jornalista Semayat Oliveira. Ela é autora do capítulo “Tive que Matar a Marli Para Viver”, sobre Marli Pereira Soares, a Marli Coragem, que teve o irmão morto pela polícia em 1979. “Não podemos nunca nos esquecer das inúmeras mulheres que têm lutado pela memória dos seus, que é a memória de todo um povo”, destaca. 

Silvia Bessa guarda uma história para além das páginas do livro. É dela o perfil de Elzita Santa Cruz, mãe do militante Fernando Santa Cruz, desaparecido em fevereiro de 1974, aos 26 anos. Ela finalizou a revisão do texto em junho de 2019 e, na manhã seguinte, recebeu a informação de que Elzita havia falecido. Ela tinha 105 anos e passou mais de quatro décadas buscando informações sobre o filho. “Eu a vi de vermelho dentro de um caixão. Eu estava ali contemplando uma mulher de coragem”, comenta a jornalista. 

Presente

O Estado brasileiro já foi condenado diversas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, integrante da Organização dos Estados Americanos (OEA), por não investigar e punir os responsáveis pelos crimes e violações de direitos humanos – assassinatos, torturas, desaparecimentos forçados e sequestros – cometidos durante a ditadura.

Para Rogério Sottili, diretor executivo do Instituto Vladimir Herzog, que leva o nome do jornalista morto em 1975, “Heroínas Desta História” é um importante instrumento para revisitar um país extremamente violento: “Não elaboramos adequadamente os processos de violência históricos no Brasil. Por isso, temos um presidente que homenageia torturador e rasga a Constituição”, finaliza Sottili. 

Projeto continua

De acordo com as organizadoras Tatiana Merlino e Carla Borges, que também são autoras de perfis do livro, o projeto irá se desdobrar em outros volumes, ainda sem data de lançamento. A ideia é continuar destacando mulheres que transformaram suas vidas em sinônimo de luta por memória, verdade e justiça, tema tão caro à democracia. "Queremos seguir contando a história dessas mulheres, como as 'Mães de Acari'. Será outra grande pesquisa, porque a violência de Estado continua", afirma Tatiana.

“Heroínas Desta História” (ed. Autêntica, coedição Instituto Vladimir Herzog), 400 págs., R$ 59,80 

“‘Nasci na aldeia Umréruré, antes do contato.’ Assim Carolina Rewaptu começa a me contar sua vida. Ela nasceu em 1960, quando os Xavante Marãiwatsédé tsipodo, 'povo de Marãiwatsédé', começavam a enfrentar o cerco dos brancos. Marãiwatsédé foi o último grupo xavante contatado pelos brancos, porque vivia ao norte do Mato Grosso, na fronteira com o Pará. Em pouco tempo, o significado de “contato” – o contato com os brancos – desabou sobre suas cabeças. Carolina tinha 6 anos quando três aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) pousaram na aldeia onde vivia. Pessoas que falavam uma língua diferente da sua disseram que mais brancos viriam, para ocupar a terra. Que eram muitos. E quem ficasse seria massacrado.” (Trecho de “Heroínas Desta História”, capítulo “Sobreviver e Recriar o Mundo”, de autoria da jornalista Patrícia Cornils)

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