No Nordeste, uma adolescente tirou a própria vida depois que um vídeo íntimo dela vazou na internet. Antes do suicídio, ela deixou uma carta para a mãe pedindo desculpas pelo ocorrido e por tê-la decepcionado. Esse fato aconteceu há alguns anos, foi noticiado na imprensa e nunca saiu da cabeça do diretor mineiro Cris Azzi. Assim, ele decidiu que usaria a notícia como ponto de partida para um filme e transformaria a tragédia em ato de enfrentamento e, principalmente, de empoderamento feminino.

“Luna”, o filme que estreia hoje nos cinemas, é resultado de um projeto que levou anos de pesquisa. Mais do que falar sobre o território da internet, a exposição, os vídeos íntimos e a difamação, Cris Azzi traz o universo adolescente em toda a sua complexidade, de forma sensível. Fazer um filme “teen” pode ser algo muito leviano se o autor não abordar os temas com seriedade e verdade. Azzi, no entanto, consegue driblar os clichês e entregar um longa que mostra as descobertas sexuais, os questionamentos, a curiosidade e as experimentações típicas dessa fase sem apelar para sentimentalismos ou simplificar os dramas da adolescência.

“Eu me pergunto, até hoje, por que fui tão tocado pela história dessa menina que se matou e não tenho uma resposta clara dentro de mim”, afirma Azzi em entrevista ao Magazine. “Ela me leva à minha adolescência, às paixões, às questões familiares. Tive uma adolescência muito comum, mas tive muitos dramas. Acho que é uma época em que a gente não tem essa noção de que as nuvens vão passar”, diz.

Para conseguir falar desses dilemas sob o ponto de vista de uma garota, além do trabalho de pesquisa, Azzi montou rodas de bate-papo para trocas de experiências entre meninas adolescentes. “O roteiro começou a ganhar corpo a partir desse processo de conversas com mulheres jovens e adolescentes”, afirma Azzi, que contou com o apoio da atriz e produtora belo-horizontina Ana Regis para esse trabalho em grupo.

“Convocar grupos de garotas facilitou a dinâmica para discutir questões mais profundas. Foi um processo muito transformador, especialmente porque foi quase uma sessão terapêutica”, lembra Azzi, que ficou impressionado com o grande número de jovens decepcionadas com universo masculino em diferentes questões – assédio, abandono, estupro e violência. “Nesse meu lugar de homem, esses questionamentos fizeram virar uma chave para a construção do roteiro”.

De um desses grupos surgiram sua protagonista, Luana, e a atriz que deu vida a ela de maneira muito forte, Eduarda Fernandes. O diretor optou por começar o filme já com a exposição de Luana ao julgamento dos colegas após um vídeo íntimo viralizar na internet e se espalhar pela escola.

O público não vê o conteúdo das imagens, mas lê a reação dos outros em ofensas feitas pelas redes sociais. Desesperada e sozinha, a jovem corre para casa e usa seu computador para gravar uma despedida para a mãe, junto com um pedido de desculpas. Na gravação, Luana diz que sente muito por ter decepcionado a mãe, que tanto se esforçou para criá-la. Para Luana, o pior dessa história não é a vergonha da sexualidade exposta, mas a tristeza que ela acredita ter causado à mãe.

A partir desse acontecimento, Azzi passa a mostrar a vida de Luana antes da exposição e aborda várias questões sociais que mostram quem é essa jovem, sem julgamentos e sem exageros. Tudo é pincelado sem ser jogado na cara do espectador. Luana foi criada apenas pela mãe. Quando a menina pergunta do pai, a mãe simplesmente diz que não vale a pena Luana conhecê-lo. A casa em que vivem é bem simples e inacabada.

A escola onde Luana estuda abriga alunos ricos e pobres, e a diferença social entre ela e a amiga, Emília, (Ana Clara Ligeiro), é gritante. Azzi constrói a amizade das garotas de forma a mostrar não somente a sexualidade, mas as diferenças que vão além do material. Valores, abandono, alienação parental, abusos e violências: Todo o entorno leva as amigas por caminhos espinhosos.

Sem dar muito spoilers, Azzi fornece aos espectadores elementos de drama e desespero, mas entrega uma obra esperançosa. Sua trama sofre uma virada e o que era beco sem saída ganha uma luz. “Sororidade” é a palavra da moda, mas faz todo o sentido nos dias de hoje e é algo essencial no longa de Azzi. Luana é sobrevivente, pois percebe que as nuvens são sempre passageiras.

Entrevista: Cris Azzi

É curioso que “Luna” tenha um diretor homem. Como foi fazer um filme tão feminino?

Quando o filme foi mostrado fora do Brasil, tratavam a mim como diretora, porque o nome “Cris” dá essa leitura de não saber se é homem ou mulher. Mas devo isso à forte presença de mulheres no processo do filme. Foi uma troca muito generosa. 

Como foi a recepção do filme nos festivais em que foi exibido?

Foi uma experiência bonita, porque não achei que ele fosse para festivais. Esse filme tem um encontro bonito com o público. No Festival de Brasília, programaram “Luna” para uma segunda-feira, e estava lotado. Foi uma sessão catártica. Houve outra exibição para escolas dentro do festival, e foi uma sessão com aplausos e gritos dos estudantes. 

Como foi o processo de casting para chegar às atrizes Eduarda Fernandes e Ana Clara Ligeiro?

Foi um processo longo, com 500 ou 600 pessoas. Eduarda já estava participando das rodas de bate-papo de pesquisa e trouxe meninas que estavam no primeiro encontro. Não foi teste, e sim conversa. Eduarda chamou atenção por sua inteligência cênica incomum para a idade dela. Já a Ana não tinha as características que eu procurava na Emília, mas tinha no corpo algo performático que me interessou.

Como você vê o cinema nacional hoje, especialmente em Minas Gerais?

Do ponto de vista da realização, houve um amadurecimento. O cinema nacional passou por esse processo de retomada com os blockbusters ou os filmes mais bonitos, mas ensimesmados, sem muito diálogo com o público em geral. Hoje, há um engrandecimento narrativo, diminuindo esse espaço entre o blockbuster e o cinema de arte.