Vera Verão, Chacrinha, Clodovil, Faustão, Xuxa e Pelé. É com suavidade na voz e na melodia que a carioca Carol Naine, 35, introduz personagens tão díspares quanto marcantes da cultura pop brasileira na abertura de seu segundo disco (e dá seu recado). A canção “Às Senhoras e Senhores” (parceria com a esposa, Luciana Elaiuy) abre os trabalhos de “Qualquer Pessoa Além de Nós”, título que não dá nome a nenhuma das 11 faixas do sucessor do disco de estreia. Este trazia na capa apenas a assinatura da cantora e compositora, indicada ao 28º Prêmio da Música Brasileira na categoria melhor canção, cuja cerimônia deste ano, em homenagem a Ney Matogrosso, acontece na próxima quarta-feira (19), no Rio de Janeiro.
Anunciada por Caetano Veloso, Carol vai competir com nomes consagrados, como Zeca Pagodinho (com “Nunca Mais Vou Jurar”) e Tom Zé (por “Descaração Familiar”). Já a carioca concorre com “Dizputa”. Canções e título assim alinhavados dão a senha das pretensões da artista, que não tem medo de abordar temas espinhosos e sabe muito bem como levar o público, de fato, à reflexão.
“Se eu não usasse o humor, não chegaria até onde quero. São assuntos delicados, antigos, atávicos. Quando você incide apenas no ponto visceral e violento da questão, a tendência é afastar ainda mais as pessoas, porque são problemas difíceis de lidar. O humor as traz para perto, aproxima. Quando falo ‘puta’, a plateia presta atenção, a reação vai do riso à surpresa, até que elas param para pensar”, acredita Carol.
Na letra da música citada, além do trocadilho, a intérprete tem como arma a própria utilização corrente da expressão. “Na nossa cultura a palavra ‘puta’ adquiriu um significado comum e ofensivo ao mesmo tempo. Então, eu começo brincando com ela, como se não fosse nada, mas mostro que, no final das contas, é importante se tomar cuidado com a forma como a mulher é tratada na nossa sociedade e o quanto a linguagem tem um papel decisivo nessa história toda”, constata.
Os versos escritos por Carol detectam: “diz que é uma puta festa, uma puta produção/ que tá um puta sol, um puta calorão/ que já comeu o acarajé de uma puta baiana/ e o hambúrguer de uma puta americana/ gastou uma puta grana num hotel bacana/ com uma puta paulistana”, antes de concluir: “o indivíduo atinge a idade adulta/ ganha umas ideias dentro da cuca/ perde uns cabelos acima da nuca/ mas não aprende que mulher não se disputa”. “Logo quando compus a música, já achava que ela era potente, tanto que lancei como single. Esse reconhecimento é valioso para uma artista independente, que está fora do grande circuito. Espero que essa canção possa fazer diferença para além do nosso próprio círculo”, torce, sem deixar de fazer uma autocrítica. “Quero reconhecer a nossa própria falta de informação, de falar sem pensar. Em todas as minhas músicas eu me incluo, faço parte desse cenário, não estou alheia a nada que me toca”, garante.
Temas.Dez das 11 músicas do disco mais recente de Carol são assinadas por ela, duas com Luciana Elaiuy, e ainda uma (“Feminina”), apenas pela companheira. Temáticas como machismo, feminismo, homofobia e intolerância religiosa deixam claro: Carol fala sobre o agora. Apesar disso, ela se declara mais preocupada com o coletivo do que com a própria obra. “Não tenho essa preocupação de as músicas ficarem datadas, a ideia é que todas reflitam o nosso tempo, e que ele seja cada vez melhor.
Ainda assim, elas terão a força de representar um momento que, eu espero, seja logo superado, embora a gente saiba que as coisas, infelizmente, não estão assim”, lamenta a intérprete, que toma como exemplo a experiência vivida pela própria classe. “É triste ver recursos da cultura sendo cortados. O papel do artista é resistir. Não é o ideal trabalhar sem condições, mas isso não pode nos impedir de falar sobre política, tocar na ferida, ainda que os editais, por vezes, nos coloquem certos limites, o que fica bem chato e até constrangedor. Mas temos que dar um jeito, até na ditadura foi dado um jeito. E não precisa ser subjetivo, podemos ser diretos. Seja qual for o olhar, não se pode parar de registrar a realidade, falar a nossa verdade. A arte só não pode ser passiva”, sustenta.
Mulheres. Tanto no passado quanto para o futuro, Carol enxerga mulheres capazes de a auxiliar na luta contra mazelas contemporâneas. “Não estou sozinha, faço parte de um movimento, de exercer esse olhar feminino sobre as canções, e sem parecer clichê nem cafona. Mas tem mulheres que fazem isso não é de hoje, a gente não pode se esquecer de Rita Lee, Adriana Calcanhotto, Dona Ivone Lara. Os homens compõem há mais tempo e em maior quantidade. É para se repensar essa estrutura que vem sendo desconstruída por compositoras muito talentosas da nova geração. Tem aí uma resistência, a mulherada está fazendo o que quer”, aponta, não sem antes citar colegas que admira. “Nina Oliveira, Bruna Moraes, o coletivo Mulheres Criando, aí de BH. Somos muitas”, diz.
CRIAÇÃO
Artista reflete sobre o nascimento de uma canção
Carol Naine tem lido a autobiografia de Simone de Beauvoir, os diários de Susan Sontag e uma biografia do pintor holandês Vincent van Gogh. Para completar sua aventura no universo literário mais recente, incluiu o romance “Dois Irmãos”, de Milton Hatoum. Além da leitura, ela destaca outra atividade fundamental na hora de se inspirar. “Ouvir muito, e não falo apenas de música, mas ouvir as outras pessoas, entender o que elas sentem, isso é especial”, sublinha.
Embora tenha estudado música e feito aula de balé e sapateado desde cedo (por volta dos 9 anos), o caminho da compositora sofreu um ligeiro desvio antes de voltar à rota original. “Fiz faculdade de publicidade, mas nunca me identifiquei. Formei nesse período um grupo de samba, chamado Cama de Viga, que resgatava o repertório mais tradicional, e então a música voltou para ficar”, aposta Carol.
É graças a essa experiência que ela identifica elementos caros até hoje em suas composições.
“Começo sempre pela letra, procurando palavras, em rascunhos. É tudo meio bagunçado, não tem organização, vou mudando uma coisa ali, mexendo outra ali. Trago comigo o interesse de contar uma história, o apego à palavra que esses sambistas, mesmo sem instrução formal, tinham. Basta observar com cuidado as letras de Cartola, Wilson Baptista, Nei Lopes, Noel Rosa, João Nogueira”, cita.
Em família, Carol teve o “empurrão” do pai, que tocava piano e saxofone, e atribui a constância performática em suas criações à dança. “Me ajudou, porque sempre fui tímida, passei a vida com vergonha. A dança é muito cênica e também conta histórias”, infere.