"Marighella, O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo" (Companhia das Letras), apresenta o personagem biografado para além do envolvimento dele contra a ditadura militar no Brasil. Qual perspectiva o norteou para a construção desse trabalho? As pessoas costumam achar que a biografia de Marighella (1911- 1969) praticamente se resume aos dois últimos anos de vida dele. Só que, antes disso, Marighella foi militante do Partido Comunista por 33 anos. Hoje, é possível cravar que foram 33 anos graças a uma descoberta do ano passado, feita no arquivos de Moscou. Lá, em uma velha pasta dos tempos da União Soviética, há uma autobiografia em castelhano de sete páginas, manuscritas, escritas por ele, quando tinha 42 anos. Mas, naquele momento ele é muito mais que um militante político e, por isso, foi um homem muito interessante. Por exemplo, em 1966, Marighella já tinha várias condenações da Justiça, com vários mandados de prisão e ele escreve um livro de poesias. Um cara que só estaria preocupado em fugir escreve um livro de poesias. Mais do que isso, ele imprime o livro, enquanto está sendo cassado em uma pequena gráfica da área portuária do Rio de Janeiro cujo dono era o cunhado dele. Ele distribui o livro e faz tudo clandestinamente. E, ao contrário do que se poderia imaginar, o tom dos poemas não é político, mas sim erótico, e muito deles, evidentemente, autobiográficos.

Então, temos o Marighella militante político, o revolucionário, o poeta, e também o homem que ama e é amado intensamente. O livro conta isso sem moralismos e com toda a riqueza que foi a vida amorosa dele até o fim da vida.

Você pesquisou a vida dele durante nove anos. Quais relatos você se deparou e buscou evitar para não recair em visões turvas sobre a trajetória de Carlos Marighella? Embora ele seja mais conhecido pelos anos vividos entre 1964 e 1969, essa parte representa uns 40% do livro. A maior parte da biografia não é sobre a ditadura militar. É interessante, por exemplo, notar que ele não ficou famoso na Bahia por política, mas, ao responder, aos 17 anos, uma prova de física no velho ginásio da Bahia em versos. Essa prova é conhecida e está na íntegra no livro. Eu descobri a correção do professor. E como há a mitologia antimarighellista, também existe a mitologia pró-marighellista. Esta corrente sempre contou que ele recebeu nota dez por essa brilhante prova. Quando fui apurar, percebi que o professor de fato ficou muito impactado com aquilo e corrigiu a prova dele também com versos rimados e elogiou a criatividade do aluno, mas disse que o conteúdo está todo errado e, por isso, não deu dez para ele. Marighella fica, assim, famoso na Bahia, em 1929, com esses versos. Depois, vai para as manchetes dos jornais ao ser preso em 1936 no Rio de Janeiro e volta a ser preso, em 1939, em São Paulo. Posteriormente, quando ele é deputado federal em 1947, Marighella já é um homem ultrapopular, tanto que milhares de foliões cantaram nos blocos cariocas no Carnaval de 1947 um samba que tinha na letra o nome de Marighella. Ele tem uma vida muito intensa.

Na biografia você também chama atenção para a relação do biografado com as artes. Marighella é preso em 1936 e convive na cadeia com Graciliano Ramos, que se torna amigo dele. Depois de Ilha Grande, ele é preso com Jorge Amado, que vai ser um dos maiores amigos dele. Os dois são os ghost writers da bancada comunista do PCB na Constituinte de 1946 e têm histórias engraçadíssimas porque os caras eram muito criativos. Em 1958, ele articula nos bastidores, junto a Jorge Goulart e Nora Ney, uma excursão de músicos a União Soviética, que leva, entre outros, Dolores Duran. Nora já era muito famosa por ter gravado o primeiro rock’n’roll no Brasil, "Rock Around The Clock", e o Jorge por ter gravado a música tema de "Rio 40 Graus", de Nelson Pereira dos Santos. Marighella leva um tiro no cinema, no dia 9 de maio de 1964, no Rio de Janeiro e, na véspera, ele visitou um grande amigo, o dramaturgo Dias Gomes. E Dias achou: ‘poxa, ele vai me mostrar aqui um panfleto contra os generais’. Nada, Marighella sacou o último lote de poemas dele para pedir a opinião de Dias. Quando ele vira guerrilheiro e um personagem mundial, quem dá dinheiro para ele manter a Aliança Nacional Libertadora é Luchino Visconti e Jean Luc Godard. Jean Miró dá desenhos para ele leiloar. Sarte também publicou cinco artigos dele, e Marighella também contou com o apoio de Glauber Rocha e de Augusto Boal. Ele teve uma vida também muito intensa no meio da cultura desde sempre.

Em meio a fatos diversos, quais descobertas lhe fizeram entender melhor o percurso real de Marighella? A vida real de Marighella é muito mais espetacular que toda a mitologia a favor ou contra criada em torno dele. Por exemplo, por muito tempo se afirmou que ele morreu tentando puxar seu revolver para enfrentar 29 policiais. Mentira. Marighella estava desarmado. Diziam também que ele era um bêbado. Isso não é verdade, ele era abstêmio, não bebia álcool. Já disseram também que eles nasceu na região da Baixa do Sapateiro, em Salvador. Fui atrás da certidão de nascimento e ele veio ao mundo no local onde hoje está sendo reconstruído o estádio Fonte Nova. Enfim, existe um grande repertório contra e a favor dele e grande parte disso é fictício.

Em 2011, Marighella teria completado o seu centenário de nascimento. Naquele ano, ele teve a sua anistia aprovada pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Você acredita que esse fato convida as pessoas a revisarem a vida dele ou ele se impõe mais como uma espécie de justiça tardia?
Representa tanto um acerto de contas do Brasil com o Brasil quanto um convite aos brasileiros para conhecerem um brasileiro que marcou a nossa história, concordemos ou não com os valores, porque ele lutou e deu a vida. Hoje, é impossível fazer uma lista dos brasileiros de maior projeção sem incluir o Marighella. Ele é muito mais conhecido no exterior do que no Brasil. E olha que 2012 foi o ano de Marighella. O clipe dos racionais ("Mil Faces de um Homem Legal"), premiado na MTV, conta a história dele, o meu livro também reforça isso e Caetano Veloso, em seu novo disco, lançou uma música, "Um Comunista", inspirada nele.

Boa parte desse desconhecimento você credita ao efeito de soterramento da memória empreendido pela ditadura? O que eu tenho refletido sobre isso é que o entulho autoritário da ditadura ainda é muito mais perene do que se pode imaginar. Marighella não é citado nos livros escolares e eu não espero que os livros de história o promovam nem o condenem, mas omitir o Marighella é equivalente a um crime de desonestidade. Já outros personagens não são omitidos. Por um lado, a historiografia oficial tentou apagar a memória dele e ele também passou a maior parte de sua vida tentando apagar as suas pegadas por uma questão de sobrevivência. E isso para quem é repórter por ofício e obrigação, por outro lado é um grande estímulo. Minha pesquisa demorou nove anos, mas eu achei que tudo não passaria de dois.