A voz permanece grave, assim como Angela continua selvagem. Do primeiro (e antológico) disco, lançado em 1979, Angela Ro Ro, 67, mantém o apelido que ganhou graças à rouquidão da risada.
Livre dos excessos etílicos do começo da carreira, ela garante que o novo disco, “Selvagem”, com lançamento previsto para este ano pela Biscoito Fino, traz outra característica inalterada. “São raros os compositores que conseguem, com quase 40 anos de estrada, continuar criando letras e melodias com qualidade, e, modéstia para longe de mim, minhas musiquinhas são bem bonitas”, graceja. Com 11 faixas, o disco apresenta a nova safra de inéditas de Angela desde que ela colocou no mercado, em 2013, “Feliz da Vida!”, gravado ao vivo com participações especiais, como as de Sandra de Sá, Paulinho Moska e Maria Bethânia.
“Já fiquei mais tempo sem entrar em estúdio, por opção, mas, dessa vez, tinha esse material, que não está cansativo, não repete nada, é pulsante. Estou sempre compondo, e chega uma hora que a gente tem a necessidade de mostrar. Se eu fosse amadora, também ia querer mostrar, mas, além de tudo, é meu ganha-pão, não é, meu amor? Eu vivo disso”, justifica a cantora, que aproveita o ensejo para comentar o momento político do país. “O disco foi todo feito na casa do meu arranjador, o Ricardo McCord. Somos só eu e ele com programações eletrônicas, no teclado. Essa crise que já dura uns oito anos atingiu todo mundo, inclusive gravadoras e pessoas como eu, que não são pobres, mas estamos sentindo no bolso. Então, haviam poucos recursos para fazer o disco. Aí, eu faço o quê? Fico deprê, desisto? Não, vou fazer igual o Caetano (Veloso) com a Gal (Costa), usar a tecnologia, coisas que as pessoas de mais idade, da minha geração, costumam reclamar. Mas não é sampleado, não tem imitação, sou toda original”, afiança.
Repertório. Samba, xaxado, blues, rock, balada. Todos os ritmos estarão no disco novo de Angela que, segundo ela, já está todo gravado. “Há coisas dentro de uma gravadora que ninguém tem a obrigação de saber, como eu não sei de muitas coisas que acontecem numa redação, mas a minha parte já está feita, agora é esperar o álbum sair do forno, e ele está lindo, você vai amar”, promete Angela.
Para comprovar a tese, ela recita um trecho da faixa-título e explica a motivação da música. “Em ‘Selvagem’ eu canto: ‘sou livre e não adianta/ tentar me cortar a garganta/ eu sou selvagem/ e me sobra coragem/ pra traçar minha própria viagem’. É um rock que fala desse terrorismo mundial que quer nos deixar medrosos, acuados, nos coloca a peixeira na jugular e a pressão em cima da cuca, qualquer cidadão sente isso, os algozes estão aí, alguns são profissionais, outros agem disfarçados”, alerta a compositora.
A premência da liberdade volta a marcar presença em outra canção do álbum, onde Angela se vale de um dos traços mais conhecidos de sua personalidade. “Escrevi um sambão chamado ‘Maria da Penha’, sobre essa lei que precisou ser criada depois que uma mulher foi quase morta. Mas faço de uma maneira que não é trágica e chega quase a ser humorística. No início digo na letra que o descarado que deu porrada foi perdoado, está solto por aí, mas, depois, eu mudo de opinião, e aviso: ‘Seu delegado/ chama logo o camburão’. Ficou até romântica a música”, brinca. No entanto, a violência não deixa de ser um assunto sério para Angela, que perdeu parte da audição e sofreu um deslocamento de retina quando, na década de 80, foi agredida por policiais militares em razão de sua homossexualidade. “Nós, mulheres, precisamos de coragem até para gritar ‘socorro’, pois esse grito às vezes é abafado por nós mesmas, pelo medo que sentimos, já que os espancadores estão em toda parte. É uma tristeza muito grande constatar que o agressor pode ser o marido ou companheiro que escolhemos. O samba que eu fiz, no final das contas, é sobre a mulher que resolveu não aguentar mais”, garante a intérprete.
Diversa. Nitidamente empolgada com o presente, Angela não perde a chance de contar a história de mais uma composição. Autobiográfica, “Parte com Capeta” sintetiza sua figura. “Essa música é um xaxado delicioso que fala do leque de entidades e personalidades dentro de uma pessoa só”, e adianta, ainda, uma espécie de “samba-bossa-groove” mais lírico. “Canto o amor de todas as cores, os encontros tesudos da vida”, afirma.