Literatura

Antologia mapeia os rumos da ficção científica no Brasil

Foram selecionados contos de 30 autores brasileiros

Por Carlos Andrei Siquara
Publicado em 20 de janeiro de 2019 | 03:00
 
 
 
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A ficção científica no Brasil foi inaugurada a partir do romance “O Doutor Benignus”, publicado em 1875 por Augusto Emilio Zaluar (1826-1882), um português naturalizado brasileiro. De lá para cá, vários outros escritores já flertaram com o gênero, entre eles o clássico Machado de Assis (1839-1908), cujo conto “O Imortal” é apontado como texto que possui características desse segmento. Um olhar para a trajetória dos pioneiros, além dos contemporâneos, é apresentado na antologia “Fractais Tropicais: O Melhor da Ficção Científica Brasileira” (Sesi-SP), que reúne, assim, contos de 30 nomes e foi organizada pelo crítico e escritor paulista Nelson de Oliveira, 53, cujas ficções ele assina com o pseudônimo Luiz Bras.

Idealizador de outras compilações, entre elas “Geração Zero Zero” (2011) e “Geração 90: Os Transgressores” (2003), Oliveira, desta vez, “soma forças” com Roberto de Sousa Causo e Braulio Tavares, que produziram, respectivamente, as antologias “Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil: 1875 a 1950” (2003) e “Páginas do Futuro: Contos Brasileiros de Ficção Científica” (2011). “São livros que removem o manto de invisibilidade da ficção científica brasuca”, dispara. Oliveira critica que, apesar da trajetória de mais de um século, as histórias de autores brasileiros que lidam com projeções e futuros nebulosos permanecem à margem.

Seu objetivo com o novo volume, portanto, é mostrar aos leitores um panorama do que já foi feito de mais qualidade e vem sendo produzido atualmente no país – o que, a seu ver, merece mais reconhecimento. “Mesmo com o preconceito, a ficção científica está vivendo um ótimo momento. O número cada vez maior de títulos lançados anualmente mostra que há uma grande comunidade de fãs em ação. Mas eu sinto que a ficção científica brasileira precisa chegar às camadas mais altas do mercado editorial e conquistar as grandes instâncias legitimadoras: os prêmios e as feiras importantes, as grandes editoras, o prestígio acadêmico”, defende Oliveira.

Para oferecer essa perspectiva mais ampla da ficção científica nacional, o organizador dividiu os textos dos contemplados em três ondas. Na primeira, ele localiza narrativas de escritores como André Carneiro (1922-2014) e Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982), que foi a segunda mulher a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras e deixou romances como “A Muralha” – já adaptado três vezes para a televisão, sendo a última de Maria Adelaide Amaral, exibida em 2000 pela TV Globo.

Na segunda onda, surge um maior número de integrantes. Entre eles, o cantor, compositor e ator Fausto Fawcett, Lucio Manfredi, Braulio Tavares, Finisia Fideli e Roberto de Sousa Causo. A terceira abarca Andréa del Fuego, Ronaldo Bressane, Cirilo Lemos, Cristina Lasaitis e o próprio Luiz Bras, dentre outros nomes.

Essa classificação, de acordo com Oliveira, segue um modelo também aplicado em antologias internacionais. “A ideia pegou entre nós, e, desde então, a história da ficção científica brasileira é dividida em ‘precursores’ (de 1875 até 1960), ‘primeira onda’ (anos 60 e 70, impulsionada pela editora GRD e pela EdArt), ‘segunda onda’ (anos 80 e 90, impulsionada pelos fanzines e pelo Clube dos Leitores de Ficção Científica) e ‘terceira onda’ (de 2000 até hoje, impulsionada pela web e pelas pequenas editoras alternativas)”, completa o organizador.

“Complexo de vira-lata”

Para Oliveira ainda é um “mistério” explicar por que a ficção científica nacional não disputa os mesmos espaços com os títulos estrangeiros, os quais são mais consumidos. Ele arrisca dizer que, em termos de gostos, também há impacto do propalado “complexo de vira-lata” – termo criado pelo dramaturgo e escritor Nelson Rodrigues (1912-1980) para se referir ao sentimento de baixa autoestima dos brasileiros. “É como se dissessem: ‘se é brasileiro não pode ser bom’. Mas esse comportamento está mudando pra melhor. Meu desejo é que a antologia ‘Fractais Tropicais’ desperte o interesse principalmente dos jovens leitores que até pouco tempo atrás nem sabiam que nós também escrevemos e publicamos ótima ficção científica. Gostaria que ‘Fractais Tropicais’ se tornasse um best-seller e abrisse caminho pra outras antologias, provando que nossa ficção científica também pode ser um empreendimento comercialmente viável”, afirma ele.

Fausto Fawcett, 61, também percebe que há uma certa resistência e relata discordar da visão predominante que associa a ficção científica a um “subgênero”. Ele chama atenção para a importância de dar os créditos necessários às histórias, que, para ele, não deixam de tratar da condição humana, como grande parte da tradição literária já o fez. “A pessoa, às vezes, pode chegar e dizer assim: ‘ficção científica, ah... aquela coisa ‘geek’. Não gosto muito, não. É difícil’. Mas isso tem que ser deixado de lado. Há elementos na ficção científica que podem não ser encontrados nos textos mais tradicionais, mas há uma reflexão filosófica ali, que abrange as relações sociais, emocionais e que não deixa a dever a nenhuma literatura”, conclui Fawcett.

Escritores comentam as principais motivações que os conduziram para o universo da ficção científica

Entre os autores brasileiros, a possibilidade de poder lidar com temas atuais é um consenso quando indagados sobre o que os motiva a criar histórias ligadas ao universo da ficção científica. O veterano Fausto Fawcett, 61, que prepara o lançamento de “Cachorrada Doentia”, no qual vem trabalhando desde 2014, relata ter se baseado nas ondas de ódio e polarizações tão visíveis no Brasil, mas também em outros países do mundo, para criar o pano de fundo do seu próximo romance.

“O livro vai tratar da existência de uma quarta guerra. Depois de duas, digamos assim, quentes e uma guerra fria, chegou o momento de uma guerra que é travada no plano das sensações, toma as mentes e os comportamentos, gerando ódio e fundamentalismos”, comenta Fawcett. Ele antecipa que a narrativa vai expor uma situação em que o estresse pós-traumático é disseminado e não se restringe à experiência dos soldados recrutados para estar no fronte, como acontecia nas guerras predecessoras à que ele vai apresentar na sua ficção.

“Essas polarizações criam o ambiente propício para provocar uma série de transtornos psicológicos. De repente, o impacto que parecia restrito aos soldados e tropas de elite anteriormente agora vai surgir massificado, perto de nós, nas esquinas. Esse cenário catastrófico e claustrofóbico é o que vai permear a trama desse livro, que projeta um estrago apocalíptico não só no espaço interno, mas também dentro das pessoas”, completa Fawcett.

Cirilo Lemos, 36, outro autor que, assim como Fawcett, integra a antologia “Fractais Tropicais: O Melhor da Ficção Científica Brasileira” diz procurar lidar com “cenários e situações que nos permitem antecipar questões e buscar respostas, de discutir o que somos e para onde vamos como indivíduo e sociedade”. Contudo, a chancela da ficção científica nunca foi algo a princípio perseguido por ele.

“Quando escrevo, não penso em gêneros específicos, apenas na história que quero contar. Mas meus caminhos inevitavelmente me levam para a ficção científica, a fantasia e as misturas possíveis entre as duas”, completa o fluminense.

Dentre seus assuntos preferidos, ele elege as discussões sobre as possíveis alterações na percepção humana do que é realidade. “As fronteiras entre o real o sonho são os temas que mais me interessam como escritor e, principalmente, como leitor”, completa Lemos.

A autora paulistana Cristina Lasaitis, 32, relata gostar de histórias com teor científico mais apurado, a chamada ficção científica “hard” (dura, em tradução livre). Um dos representantes dessa seara que ela aprecia é o norte-americano Arthur Charles Clarke (1917- 2008), autor do livro “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968). Ela ressalta que seu interesse pelo gênero se dá justamente porque é um dos únicos que permite uma reflexão mais direta dos caminhos palmilhados pela humanidade.

“O Yuval Noah Harari, que é autor de um best-seller chamado ‘Sapiens’, e tem se dedicado a pensar o século XXI, dedicou um capítulo inteiro desse livro à ficção científica. Ele diz que este é o único gênero capaz de tratar de questões pertinentes do que vamos apenas encontrar daqui para frente, ao nos aproximarmos dessas projeções por meio da literatura. O que mais me interessa é essa possibilidade de tratar de aspectos que vão ser importantes daqui a pouco”, comenta Cristina.

A mineira Aline Valek, 32, que escreveu “As Águas-Vivas Não Sabem de Si”, citado nas listas de ficção científica, declara que não pensou em fazer uma narrativa do gênero, embora se nutra de referências associadas a ele, como as expedições submarinas. Por outro lado, ela não se incomoda em ser ligada ao segmento e observa que isso pode apontar como ele vem mudando. “Acho que a própria ideia de ficção científica vem se transformando e ela vem abarcando várias perspectivas, que agora cabem nela. Eu prefiro não definir tanto, mas o leitor pode fazer o que ele quiser”, diz Vale.

 

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