CABACEIRAS " José Nunes Neves, o Zé de Cila, tem 61 anos e uma trajetória no cinema que totaliza três trabalhos em longa- metragem. São poucos, mas todos significativos: "O Auto da Compadecida", "Cinema, Aspirinas e Urubus" e "Canta Maria".
Em todos, Zé de Cila participou como ator. Só que o espectador ou não o viu ou nem o percebeu. Ele é um dos 4.296 moradores do pequeno município de Cabaceiras, localizado no interior da Paraíba, na seca região do Cariri, sertão adentro a quase 200 km da capital João Pessoa.
Como boa parte da população local, Zé de Cila se envolveu na produção de filmes há uma década, quando a equipe de "O Auto..." aportou ali em frente à sua vendinha de artesanato procurando atores para figuração.
Isso porque Cabaceiras tem sido considerada uma versão tupiniquim e sertaneja da mítica Hollywood, em Los Angeles. Cabaceiras virou a Roliúde Nordestina " com direito a letreiro branco na estrada que lhe dá acesso.
"Eu estava aqui quietinho quando bateram na minha porta", relembra Zé de Cila, em referência à equipe do filme de Guel Arraes. Famoso pelas histórias intermináveis e pela simpatia em todas as horas do dia e da noite, Zé não nega prosa.
O repórter do Magazine esteve na casa do sujeito numa sexta-feira, perto das 20h. Ele assistia à TV (o desenho animado "Tom e Jerry") e prontamente iniciou os "causos" quando perguntado sobre a experiência em cinema.
"Eu fui um religioso no "Auto da Compadecida". Passava o dia inteiro "empacotado" numa roupa de padre". Como recordação da experiência, Zé tem várias fotos das filmagens " sendo a melhor delas a que posa ao lado do colega de elenco Paulo Goulart. E onde está Zé de Cila em "O Auto da Compadecida""
"Eu ia ser um "dublê" do Rogério Cardoso. Só que não entrou a cena. Mas você pode ver a minha mão quando o Matheus Nachtergaele é expulso da igreja. Fui eu que empurrei ele!", orgulha-se.
A figura de padre não combina muito com Zé de Cila. Sua fama em Cabaceiras é a de ser o maior "consolador de viúvas" da região. Consta que mais de 20 infelizes recém-descasadas por força da morte do marido foram consoladas por Zé.
"Viúva é o melhor tipo de mulher. Está carente, precisando de ajuda e força. Eu vou lá e me solidarizo com ela", desconversa, antes de fazer um gesto levemente obsceno.
Mas não há nada de grosseiro em Zé de Cila. O encanto de suas palavras e o carisma natural o credenciam na árdua tarefa de apagar a dor das viúvas. Em "Cinema, Aspirinas e Urubus", sua participação foi ainda menor do que em "O Auto...", mas um pouco mais condizente com seu jeito descolado.
"Fui convidado para interpretar um burguês que ia aparecer numa cena de cabaré. Imagina só! Ficava vestido de burguês rico, mas tinha só R$ 15 no bolso".
Sobre a cena em questão, Zé relembra que tinha instruções de "não falar nada e só ficar andando no cabaré, namorando, tomando umas aqui e ali...". A cena entrou no filme" "Eu não me lembro de ter visto quando assisti. Mas sabe como é, cinema filma muito e depois tem que cortar", justifica.
Orgulho
Ainda que sequer apareça de corpo inteiro nos filmes que participou, Zé de Cila mantém ânimo invejável. Fez curso de teatro (quando encenou peça inspirada em sua fama de "viuveiro") e sempre espera um novo convite.
Esse orgulho manifestado por Zé quanto ao aspecto "roliudiano" da cidade é notório num passeio por Cabaceiras. Num lugar em que todos se conhecem e sabem de tudo, o fascínio pela característica de ser cenário de diversas produções de cinema não é escondido.
Os olhos brilham quando o assunto vem à tona, as histórias se acumulam e a "intimidade" e amizade com Selton Mello, João Miguel, Denise Fraga, Diogo Vilela e tantos mais parece coisa natural. Natural também é a escolha de Cabaceiras como espaço de filmagens.
Os motivos são vários. Aqui está o menor índice pluviométrico do Brasil. Há, no máximo, uma grande chuva por ano (e olhe lá), o que ajuda muito o cumprimento de cronogramas de produção sem maiores incidentes naturais.
Tem ainda o centro histórico, patrimônio conservado de construções antigas " incluindo a Igreja Nossa Senhora da Conceição, espécie de marco-zero de Cabaceiras: sua fundação, datada de 1835, foi o estopim para a emancipação da vila fundada em 1720.
E, claro, a receptividade do cabaceirense, sempre disposto a atender as demandas das produtoras.
"Precisamos tratar bem para que eles voltem", afirma uma guia de turismo da prefeitura local. Outro guia, este de um memorial fundado numa das ruas e espaço de todo material referente a filmes realizados aqui, conta que Cabaceiras não era valorizada pelos próprios moradores.
"Não prestávamos muita atenção no potencial da cidade. Quando o cinema começou a aproveitar o nosso espaço de um jeito tão legal, passamos a perceber a necessidade da gente preservar e defender a comunidade em que vivemos".
O cinema, afinal, salvou Cabaceiras de ser apenas mais uma das centenas de localidades encravadas na caatinga nordestina. "Tudo isso serve até para a nossa auto-estima", completa o guia.
Serve tanto que até o Judiciário se adapta ao contexto cinematográfico de Cabaceiras: a rua de terra atrás da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, usada em inúmeras cenas-chave de "O Auto..." e "Cinema, Aspirinas e Urubus", está proibida por lei municipal de ser asfaltada " justamente porque é constantemente utilizada para retratar outras épocas do Brasil.
A prefeitura registra 11 produções que tiveram cenas filmadas em Cabaceiras. Entre realizações de sucesso e outras pouco vistas ou inéditas, constam "O Auto da Compadecida", "São Jerônimo", de Júlio Bressane, "Viva São João", de Andrucha Waddington, "Eu Sou o Servo" de Eliezer Rolim, "Madame Satã", de Karim Ainöuz, "Terras de Cabras", de Jaqueline Lieda, "Canta Maria", de Francisco Ramalho Jr, "Tempos de Ira", de Marcélia Cartaxo, "Desvalidos", também de Ramalho, "Cinema, Aspirinas e Urubus", de Marcelo Gomes, e "Romance", novo projeto de Guel Arraes.
Enchentes na seca
"É Tristão e Isolda no sertão da Paraíba!", define um dos moradores, perguntado sobre o que trata o quarto longa de Guel Arraes, em fase de finalização.
Boa parte das cenas de "Romance" foram filmadas no Lajedo de Pai Mateus, formação rochosa a 14 km do centro de Cabaceiras e cujo pôr-do-sol é o mais famoso do Estado.
Reza a lenda que o lugar é místico e energizador, muito por conta do citado pai Mateus, curandeiro que teria vivido ali em meados do século XVIII.
De fato, o lugar arrebata. Entre rochas maiores do que ônibus e espaços a céu aberto que dão para um azul cristalino e iluminado, o lajedo seduz e espanta a quem se dispuser a caminhar nos seus arredores. Uma história curiosa ronda a produção de "Romance".
No começo do ano, a equipe montou toda a estrutura de filmagem em região próxima ao lajedo e, por semanas, fez as cenas que, dentro do enredo do filme, passam-se no sertão. Um dia depois de desmontar os cenários, uma chuva (!) desabou e inundou todo o espaço onde estavam os equipamentos.
"Parece que o céu esperou eles acabarem o filme", comenta outro morador. Pois, apesar de ser a localidade com menos chuvas no país, Cabaceiras não sofre falta de água.
O recorde ainda é o período entre 1952 e 1960, quando a cidade não viu gota de orvalho que fosse ao longo desses oito anos. Em outras épocas, são Pedro abre as torneiras. E quando isso acontece, as inundações são freqüentes.
"O município mais seco sofre com enchentes", é o que se ouve, em tom de ironia, da boca de habitantes. Enquanto a chuva não vem (quando vem), o município se abastece pelo açude Boqueirão, regado pelo rio Taperoá.