Ao que tudo indica, as pessoas querem ser assustadas. Depois de alguns anos no limbo criativo, o terror vive um boom na indústria hollywoodiana, com um novo sucesso – como “Fragmentado”, “Corra!” e “It: A Coisa” – estreando quase toda semana. Mas se o público está aberto à ideia de palhaços assassinos e distúrbios de múltiplas personalidades, o que ele não parece mais comprar são as boas e velhas desventuras do amor.
Após viver um auge nos anos 90, a comédia romântica foi definhando criativa e financeiramente no novo milênio, até se tornar um gênero esquecido na Hollywood atual. “Ele se apoiou na fórmula fácil do mocinho encontra mocinha, mocinho perde mocinha, com muitos elementos repetitivos, e ela acabou desgastada”, reflete Fabíola Tarapanoff, professora de cinema do Centro Universitário Fiam-Faam, de São Paulo.
É por isso que o sucesso de “Doentes de Amor”, que estreia na capital nesta quinta, foi uma das grandes surpresas do ano nos Estados Unidos. O longa estreou no Festival de Sundance em janeiro, onde arrebatou público e crítica. Tornou-se a maior bilheteria de um lançamento independente do ano naquele país, ao ser lançado em pleno verão. E está na lista dos possíveis indicados ao Oscar 2018.
E o filme conseguiu isso seguindo quase à risca a fórmula do garoto conhece/perde/recupera garota. Inspirado na história real dos roteiristas Kumail Nanjiani (“Silicon Valley”) e Emily V. Gordon, o filme conta a história do comediante de stand-up Kumail (o próprio Nanjiani), que conhece, se apaixona e começa a namorar a mestranda Emily (Zoe Kazan). Os dois têm uma briga, se separam, e ela entra em coma com uma doença misteriosa. E ele passa a frequentar o hospital todos os dias, na esperança de que ela acorde.
“Doentes de Amor” traz os bons diálogos e o humor típicos da comédia romântica – além de um bom elenco, com Ray Romano e Holly Hunter ótimos como os pais de Emily. Mas ao se centrar no personagem de Kumail – imigrante, paquistanês e muçulmano – foge de dois dos aspectos mais datados e problemáticos do gênero: a premissa da mulher que vive em função de encontrar o amor; e a brancura desbotada e incômoda de seus elencos.
Pensando apenas nos títulos da década de 1990, é duro de engolir hoje os “white people problems” (problemas de gente branca) que Julia Roberts, Sandra Bullock, Meg Ryan, Matthew McConaughey & cia. arrumavam para não ficarem juntos. Já a tradição e os impedimentos da religião de Kumail são uma questão real, pertinente e convincente. E enxergar essa diversidade tão presente no mundo contemporâneo é algo que Tarapanoff acredita ser necessário para o gênero se revitalizar: “Ele precisa evoluir. Pode ser um garoto encontra garoto, ou uma comédia sobre poliamor – que pode ser tabu e polêmico, mas traz questões interessantes e foge um pouco do rótulo da comédia romântica padrão”, argumenta.
Não por acaso, os últimos grandes romances do cinema (“O Segredo de Brokeback Mountain”, “Azul é a Cor Mais Quente”, “Moonlight”) envolvem personagens LGBTQ que, no preconceito e no conservadorismo social, enfrentam obstáculos críveis para suas histórias de amor. Spike Jonze teve que criar um romance entre homem e máquina para fugir disso em “Ela”. “Talvez por influência dos seriados, o público quer ser surpreendido, e é muito difícil sair surpreendido de uma comédia romântica”, avalia a professora.
Ao manter Emily em coma durante a maior parte do filme, porém, “Doentes de Amor” não resolve um dos principais problemas que levaram ao declínio do gênero: o das personagens femininas cada vez mais fracas e banais. Se Katharine Hepburn, Rosalind Russell e Claudette Colbert interpretavam mulheres espevitadas, independentes e cheias de agência nas screwball comedies das décadas de 1930 e 1940, que deram origem à comédia romântica, Julia, Sandra e Meg foram abobalhando e diluindo essas belas heroínas nos anos 90, até chegarem às protagonistas frívolas e unidimensionais vividas por Kate Hudson, Anne Hathaway e Katherine Heigl nos exemplares dos anos 2000.
“As comédias clássicas mostravam mulheres mais modernas que as atuais. Em ‘Jejum de Amor’, a protagonista da Rosalind Russell fica dividida entre casar e ser jornalista, e escolhe a segunda opção. E é recompensada com o par amoroso”, exemplifica Tarapanoff, citando um dos clássicos do gênero. Comparativamente, o final de “Como Perder um Homem em Dez Dias”, um dos últimos bons exemplares da fórmula, de 2003, é um espelho invertido disso.
O desgaste dessa visão frívola da mulher pode ser comprovado em outro longa que também estreia na quinta. Em “De Volta para Casa”, Reese Witherspoon tentou resgatar sua coroa do gênero como uma quarentona às voltas com três inquilinos jovens e bonitões. Mas mesmo com a realeza do gênero em seu DNA – a diretora Hallie Meyers-Shyer é filha da cineasta Nancy Meyers (“Alguém Tem que Ceder”) e do roteirista Charles Shyer (“O Pai da Noiva”) – o filme foi ignorado por crítica e público nos EUA.
Isso porque a ideia de “produções para mulheres” mudou. Hoje, elas são histórias maduras como as séries “Big Little Lies”, com a própria Witherspoon, “The Handmaid’s Tale” e “Orange is the New Black”; e longas como os recentes “A Batalha dos Sexos” e “Estrelas Além do Tempo”. Enquanto isso, os últimos exemplares relevantes da comédia romântica são títulos que propõem uma revisão metalinguística sobre as convenções do próprio gênero – como “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”, “(500) Dias com Ela” e mesmo “La La Land”. Porque, ao enxergarem as complexidades e desafios reais do amor, eles entendem que a história não termina no “felizes para sempre” tradicional do gênero – na verdade, ela começa ali.