Um animal tão horripilante que as pessoas são incapazes de descrevê-lo. O torso é de cavalo, mas, como a mula sem cabeça, acima do pescoço não existe nada, apenas o vazio. “É a cara da escuridão, pode ser qualquer um de nós”, afirma o cantor e compositor Jards Macalé, 75, cujo novo disco, o primeiro de inéditas em duas décadas, recebe o nome da criatura aludida: “Besta Fera”.
Habitué do Mimo Festival (surgido no interior das igrejas de Olinda, em Pernambuco, em 2004), o intérprete foi o responsável, em 2017, pela abertura internacional da mostra dedicada a cinema e música em Amarante, no norte de Portugal. Lá, descobriu a lenda do ser que assusta na noite. Mas a surpresa foi ainda maior ao ficar sabendo que existia uma outra Amarante, no interior do Piauí, onde o mesmo folclore se difundiu.
Antes de tudo, porém, Macalé conheceu a expressão no poema “Aos Vícios”, de Gregório de Matos (1636-1696), escritor baiano conhecido como Boca do Inferno. Ao editar o texto, “para ficar o essencial”, o músico criou a canção cujo título foi pinçado dos versos: “que a mudez canoniza bestas feras”. “Estamos em plena época de bestas feras”, observa Macalé, que não deixa de notar a triste atualidade de um poema escrito no século XVII.
“Vivemos um momento de regressão, esse disco revela muito isso”, sintetiza. Como exemplo, o artista lembra um episódio recente, quando, em janeiro, uma cisne batizada de Julieta (que formava par com o cisne Romeu) foi esfaqueada de madrugada ao defender sua ninhada, no Parque Guinle, em Laranjeiras, na Zona Sul do Rio de Janeiro. “Só pode ser uma besta fera quem fez isso”, dispara Macalé.
Trevas
Vértice principal do movimento modernista na poesia norte-americana do século XX, o controvertido poeta Ezra Pound (1885-1972) é outra referência do disco. O procedimento em “Trevas” foi parecido ao que adotou ao musicar o poema de Gregório de Matos. Macalé partiu do “Canto I”, de Pound, traduzido por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, para criar a canção que foi a escolhida para ganhar um videoclipe.
O curioso é que em “Let´s Play That” (1994), Macalé adaptou “Luz”, ao partir de outro poema de Pound. “O mundo em 2019 está mais para trevas do que para luz. Nunca ouvi se falar tanto nessa palavra. Mas a treva também é o desconhecido. Pode haver esperança, a luz do fim. Até porque não adianta virem todas as forças passadistas. A História com agá maiúsculo está do nosso lado”, justifica.
No entanto, o artista não se limitou a parceiros póstumos, muito pelo contrário. Carioca da Tijuca, Macalé se uniu a uma nova cena de músicos paulistanos que arquitetou, por exemplo, os últimos álbuns de Elza Soares (“A Mulher do Fim do Mundo” e “Deus É Mulher”), como Kiko Dinucci e Rômulo Fróes. Thomas Harres (bateria), Guilherme Held (guitarra) e Pedro Dantas (baixo) se tornaram presenças indispensáveis para o peso e a sonoridade do disco. Ao falar da turma, Macalé a define como “um pessoal da experimentação”. “Só vejo arte e criação onde há experimentação, sempre trabalho em cima da surpresa, do que existe de instantâneo e espontâneo”, ratifica o artista.
Luz
Com Tim Bernardes, que participa da faixa, Macalé compôs “Buraco da Consolação”. A música recebeu um arranjo de Thiago França “à la Orquestra Tabajara”, a pedido do anfitrião. Não foi por acaso, já que o músico chama o maestro Severino Araújo (1917-2012) de “pai musical”. “Ele era meu vizinho em Ipanema”, conta. A parceria com Bernardes nasceu de uma conversa no camarim, quando ambos se confidenciaram fãs do LP “Jamelão Interpreta Lupicínio Rodrigues” (1972). O verso “o mundo está podre” reafirma a retórica de Macalé.
Aliás, a temática da morte é recorrente, embora apareça sob diferentes ângulos. “Obstáculos” é dedicada a Renô, amigo do artista plástico Hélio Oiticica (1937-1980), preso pela ditadura militar. “É uma música para um presidiário e para todos nós que enfrentamos a barra-pesada”, informa. “Limite” foi musicada sobre um poema de Ava Rocha e toca no suicídio. Por outro lado, “Longo Caminho do Sol”, com letra de Clima, que cita “O Faquir da Dor”, outra música de Macalé, revolve o desespero em humor, com participação da Velha Guarda de Vila Matilde. “Ficou um samba meio Adoniran Barbosa, meio Nelson Cavaquinho”, sustenta Macalé.
O amigo Capinam, coautor de “Movimento dos Barcos” e “Gotham City” (da histórica vaia no Festival da Canção de 1969), dá as caras e as cartas em “Pacto de Sangue”, enquanto Juçara Marçal divide os vocais em “Peixe”, com letra de Rodrigo Campos. Mas é com “Tempo e Contratempo”, de sua autoria, que o dono de um dos violões mais inventivos da música brasileira explica o cerne do disco.
“O tempo é a vida, o contratempo é a morte, mas você pode inverter isso. A morte é uma experiência única, não se morre todo dia. Sou fascinado por ela da mesma forma que pela vida”, afiança Macalé, que tem sido rondado pela perda nos últimos anos. A mais recente foi a de Cafi. A imagem que ilustra a capa de “Besta Fera” foi o derradeiro trabalho do fotógrafo, que morreu aos 68 anos em janeiro. “Cafi captou a luz da escuridão”, conclui Macalé.