Há uma cena central em “Mulher-Maravilha”. Não por acaso, é a primeira em que se vê a heroína em seu clássico uniforme. Ela vem logo após um monte de homens, pela enésima vez no filme, dizerem à protagonista Diana Prince (Gal Gadot) o que ela deve ou não deve, pode ou não pode fazer. Contrariando todos eles, ela sobe uma escada e atravessa uma terra de ninguém no meio da guerra – não porque vai ajudá-la a vencer mais rápido o grande vilão, ou seja uma boa estratégia, nem porque quer mostrar seus poderes ou provocar explosões mirabolantes. Mas porque é uma coisa boa. Vai ajudar alguém que precisa.
É nesse momento que você se apaixona pela personagem – e por seu filme, que estreia nesta quinta-feira (1°). Porque, ao contrário da briga estúpida do Batman com Superman ou da arrogância sem propósito dos Vingadores, ele mostra uma pessoa cuja força e heroísmo vêm dos princípios e ideais que defende, e não de uma necessidade patética de autoafirmação. Indo na contramão do cinismo alienante e vazio dos blockbusters – e do mundo – atuais, o longa retrata uma mulher que, mesmo confrontada pelos piores aspectos do mundo dos homens, acredita em fazer algo bom.
E isso vem a ser exatamente o arco da protagonista. O filme começa quando o avião do espião Steve Trevor (Chris Pine) cai na ilha das amazonas, colocando-as em contato com os eventos da Primeira Guerra. Quando ele conta a elas sobre o conflito, Diana acredita tratar-se do retorno de Ares, deus da guerra – previsto nas narrativas da mitologia que ela ouviu da mãe (Connie Nielsen) e da tia (Robin Wright). E decide partir, com seu laço da verdade (mas sem avião invisível), para cumprir o destino das amazonas e exterminar o vilão de vez.
Essa é a desculpa para “Mulher-Maravilha” confrontar a visão de mundo em preto e branco da protagonista – de bem X mal, mocinhas X vilões – com os complexos tons de cinza da Europa em guerra. E colocar uma mulher forte e decidida, que cresceu ao lado de guerreiras poderosas e independentes, em choque com o universo masculino e sexista do período.
O resultado é o melhor filme do atual universo DC. E o motivo, bem simples, é que a diretora Patty Jenkins (“Monster”) executa a premissa com duas qualidades essenciais, e ausentes nos longas do cineasta Zack Snyder: humor e boa direção de atores. A química inocente e afiada entre Gal e Pine cria uma espécie de inversão do clássico “Ninotchka” – uma comédia de peixe fora d’água, que revela a guerra como produto de um mundo desequilibradamente masculino.
Gal, por sinal, é a revelação do filme. “Mulher-Maravilha” é o primeiro filme em que ela é dirigida por uma mulher e, não por acaso, é o primeiro longa em que ela não é vista como um objeto. Não há uma cena em que Diana não esteja estonteantemente sexy e linda. Mas ela é também engraçada, inteligente, frágil, equivocada – enfim, complexa, como qualquer ser humano.
A israelense acessa com competência cada uma dessas camadas, que vão surgindo à medida que sua personagem, uma semideusa, entra em contato com a humanidade, e com sua humanidade – uma transformação bem representada pela fotografia de Matthew Jensen. Ela começa com a luz solar idílica da ilha grega, quebrada pelo cinza de Londres, que, por sua vez, dá lugar ao vermelho-alaranjado da guerra e ao dourado duelo de deuses do ato final.
Para além desse arco, porém, o roteiro de Allan Heinberg (roteirista gay de HQs e de séries como “Grey’s Anatomy” e “Sex and the City”) explora, na verdade, a importância das narrativas que contamos – e ouvimos. Diana interpreta a Primeira Guerra a partir das histórias da mitologia que ouviu durante a infância, chegando a associar Ares a um general alemão. Isso deixa bem claro como uma criança vai significando o mundo com base nas narrativas que ouve. E como é importante que meninas e meninos vejam filmes como “Mulher-Maravilha” para entender que garotas não são só namoradas, mães e donzelas – mas podem também ser guerreiras, deusas e rainhas.
Não que o longa de Jenkins não pudesse ser um pouco mais ousado nesse sentido. Depois de uma meia hora inicial incrível, com apenas mulheres em cena, a protagonista embarca numa missão para assassinar um oficial alemão no segundo ato, em que é a única garota do grupo – isso reforça seu choque cultural, mas outra ali para lhe fazer companhia não faria mal.
“Mulher-Maravilha” escorrega ainda em um terceiro ato desnecessariamente longo, que, além de trazer diálogos e atuações bem abaixo do que o filme oferecera até ali, força a obrigatória “batalha épica cheia de CGI contra um vilão superpoderoso”. Toda a trama envolvendo os inimigos alemães, por sinal, é a parte mais fraca do longa – assim como a trilha musical genérica e esquecível.
Ainda assim, Patty Jenkins, Gal Gadot e seu filme cumprem o desafio que toda mulher conhece bem: fazer um trabalho (no mínimo) duas vezes melhor para ter metade do retorno – afinal, machistas mundo afora têm medo de que, caso vejam um longa protagonizado por uma mulher, seus pintos fiquem ainda menores e mais inúteis. Mas, se eles querem guerra, “Mulher-Maravilha” vai vencê-los simplesmente sendo bom. Superior.
Gal Gadot
Experiência militar e nas passarelas
Intérprete da Mulher-Maravilha já serviu ao Exército e foi miss Israel em 2004
FOTO: VALERIE MACON/ AFP |
Estrela. Gal Gadot já esteve cotada para atuar em “007 – Quantum of Solace”, como a Bond Girl |
SÃO PAULO. Pouco se sabia sobre a atriz israelense Gal Gadot, 32, quando ela arrancou suspiros do público ao aparecer na pele da Mulher-Maravilha pela primeira no filme “Batman vs Superman: A Origem da Justiça” (2016).
Em seu país, Gal é uma modelo de sucesso e foi miss Israel em 2004. Como todo o cidadão israelense, ela teve de servir no Exército dos 19 até os 21 anos. Atleta, também já fez parte de times de vôlei, de basquete e de tênis.
Após a experiência no Exército, Gal começou a cursar direito, mas acabou descoberta por produtores que a convidaram a fazer um teste para ser, simplesmente, a Bond Girl do longa “007 – Quantum of Solace (2008)”. A vaga ficou com a ucraniana Olga Kurylenko, que chegou a disputar o papel de Mulher-Maravilha com Gal. A atriz continuou recebendo convites até que surgiu a personagem Gisele, de “Velozes & Furiosos”. Gal fez aulas de motociclismo e dispensou dublês nas cenas de ação.
Em 2011, chegou a ser convidada a interpretar a vilã Faora-Ul do filme “O Homem de Aço” (2003). Como a diva estava grávida na época das filmagens, o papel ficou com a alemã Antje Traue. Quando a atriz foi convidada a fazer novos testes para uma personagem de “Batman vs Superman”, ela não imaginava que o papel seria o da Mulher-Maravilha.
Debate feminista. A Mulher-Maravilha foi criada nos anos 40 pelo norte-americano Maxwell Gaines (1922-1992). De lá para cá, muita coisa mudou. Inclusive a forma como o público a vê. Representante das mulheres em meio a heróis homens provenientes dos quadrinhos, a personagem desperta a simpatia feminina, mas também gera algumas críticas por não se adequar a um símbolo politicamente correto para as questões do mundo moderno.
“Ela vai resolver sozinha todos os problemas do mundo e ainda está dentro dos rígidos padrões de beleza. O filme reforça estereótipos machistas”, lembra Carla Vitória, 25, representante da Marcha Mundial das Mulheres. Para a jovem, as meninas da nova geração podem ter melhores referências. “A heroína pode se parecer mais com uma mulher de verdade”.
As motivações da Mulher-Maravilha também passam longe das ideias do professor de história e sociologia Ricardo Bitencourt, 37. “Não há nada de revolucionário. Ela está lutando uma guerra que é dos homens e ainda colocaram nela uma roupa fetichista”. Para ele, há melhores exemplos de mulheres poderosas, como imperatriz Furiosa (Charlize Theron) de “Mad Max: Estrada da Fúria” (2015). “É uma personagem que tem uma causa maior, luta pela sobrevivência da humanidade”, diz.