O ritual se repete toda manhã. Paulo César Pinheiro, 69, toma café, lê os jornais e, sentado diante da mesa, coloca sobre ela folhas em branco, à espera da inspiração que inevitavelmente sempre vem, pelo menos há mais de cinco décadas, quando ele compôs o primeiro verso, com 13 anos. “Eu me lembro de não saber o que estava acontecendo comigo, fiquei agoniado, nervoso, então eu vi um papel e um lápis, e depois que escrevi foi que me acalmei e consegui dormir. Foi a abertura da chave, nunca mais deixei de escrever”, conta o poeta, letrista, melodista, dramaturgo e cantor, entre outras habilidades que um dos mais prolíficos artistas brasileiros da atualidade vez ou outra explora.
Agora, o autor dos versos de canções como “Espelho” (com João Nogueira), “Portela na Avenida” (com Mauro Duarte) e “Matita Perê” (com Tom Jobim), para citar apenas alguns clássicos, prepara uma série de lançamentos a fim de celebrar seus 70 anos de vida e 50 de atividade artística. O aniversário de nascimento acontece em abril de 2019, no dia 28, mas as comemorações já começaram com “Poemúsica”, livro de poemas colocado no mercado pela 7 Letras. Dividido em três seções, intituladas “Poemétrica”, “Poemágica” e “Poemística”, a publicação apresenta cem textos que colocam à prova os próprios limites da palavra.
“Eu tinha muita coisa escrita, mas nada organizado, um dia sentei para fazer uma triagem e percebi que havia esses três caminhos distintos”, explica Pinheiro. Na primeira parte, aparecem os poemas que, segundo ele, “se impõem pela métrica, pelo ritmo e pela cadência”. “Todos os meus poemas têm música, por isso fica fácil para os meus parceiros musicarem”, brinca. A segunda é calcada em experimentações linguísticas. “É a mágica de mexer na língua e inventar outro idioma, como o meu grande mentor Guimarães Rosa”, exalta. Por fim, vêm à tona escritos existenciais. “A mística é o lado de perguntas e mergulhos profundos que a gente faz dentro de si, e aí estamos mergulhando na alma de todo mundo, pois temos as mesmas dúvidas e curiosidades sobre os mistérios”, diz.
Como bom poeta desafiador da lógica matemática, ele revela que há mais livros em suas gavetas do que nas prateleiras das livrarias. Com oito aventuras literárias na praça, a fila de espera é ainda maior: 16 manuscritos. “Sou um escravo da poesia, não sei nunca o que vai acontecer, vou para onde ela me leva”, informa. Toda essa extensa obra de Pinheiro é escrita à mão. O hábito ele justifica com uma frase do cineasta Woody Allen. “O computador nasceu para resolver problemas que a gente nunca teve”, cita ele, que nunca teve um telefone celular. “Sou tecnofóbico, parei na fita cassete”, diverte-se.
Cinema
Apesar dessa espécie de refúgio, Pinheiro não conseguiu escapar da curiosidade de olhares alheios sobre a sua história. Ele é tema do documentário “Paulo César Pinheiro... De Letra e Alma”, de Andrea Prates e Cleisson Vidal, que chega para o público no próximo ano, como parte das festividades. A proposta, no entanto, só convenceu o poeta a partir de uma condição. O único depoimento é o do próprio protagonista, aliado a imagens de arquivo que retratam as lembranças contadas por ele. “Ninguém fala sobre mim, bem ou mal, pois, para início de conversa, sou eu por eu mesmo. Acho esquisito ver a minha vida na tela, mas é o que acontece com quem tem uma obra como a minha”, avalia ele, que tem o auxílio dos números para referendar sua fala.
“Eu sou o recordista mundial de música popular, tenho mais de 2.000 canções compostas e cerca de 1.400 gravadas”, destaca. E os cálculos só tendem a aumentar. Ainda em 2019, ele grava “O Lamento do Samba 2”, o décimo disco cantado de sua carreira, com 14 faixas inéditas. Só que o oceano de Pinheiro recebe águas de todos os cantos. Ele contabiliza 78 canções inéditas de sua autoria a serem lançadas nos próximos meses.
Dori Caymmi prepara álbum com 14 parcerias dos dois; Yamandu Costa estreia cantando em disco com mais 14 músicas que o violonista gaúcho fez com Pinheiro; Toquinho finaliza em estúdio um álbum com 12 faixas feitas com o entrevistado; o jovem chorão Marcelo Menezes vai pelo mesmo caminho, com outras 14 canções novas; enquanto Glória Bomfim tem data marcada para levar ao palco da Casa do Choro, no Rio, mais 14 inéditas do compositor, no dia 12 de dezembro, quando estreia o repertório do disco “Chão de Terreiro”. E Pinheiro promete cantar, em breve, música composta com Baden Powell há 40 anos, batizada de “Andarilho”.
“Tenho essa diversidade de parceiros porque o mapa do Brasil está dentro de mim. Sou amante do meu país e curioso das manifestações populares. Isso é um leque pra eu brincar”, afirma.
Três gravações antológicas
“Lapinha”
Feita com Baden Powell (1937- 2000), foi a primeira música de Paulo César Pinheiro gravada em disco. A canção foi lançada por Elis Regina em 1968 e naquele mesmo ano venceu a I Bienal do Samba da TV Record de São Paulo.
“Viagem”
Composta por Pinheiro aos 14 anos, foi lançada por Márcia, mas o grande sucesso veio com a gravação de Marisa Gata Mansa em 1973, a pedido de Clara Nunes. A melodia é de João de Aquino.
“Tô Voltando”
Parceria de Pinheiro com Maurício Tapajós, o samba foi lançado por Simone em 1979 e logo se tornou um hino pela anistia de quem deixou o país perseguido pela ditadura militar.