Em alto e bom som, a gargalhada se espalha e corta, por breves segundos, o fluxo da conversa. Durante um tempo, a risada parece se manter no ar, até que Maria Bethânia, 73, retoma o raciocínio. A reação vem após ela tomar conhecimento da seguinte frase de Letieres Leite: “Bethânia tem uma clareza dramatúrgica muito forte, cada palavra se conecta à próxima música. É como pensar em uma ópera”. A cantora acha graça na comparação com o gênero teatral dramático, surgido na Itália, no século XVII, porém, discípula do diretor Fauzi Arap (1938-2013), admite a entrega de suas interpretações. “Não economizo nada, vou toda inteira para fazer o que sinto”, declara. 

Maestro da Orkestra Rumpilezz, Letieres dirige e assina os arranjos do novo espetáculo de Bethânia, “Claros Breus”, que chega neste sábado (23) a Belo Horizonte. Os dois já tinham trabalhado juntos “esporadicamente, como no Prêmio da Música Brasileira”, relembra ela. No entanto, a primeira parceria efetiva começou a nascer quando a intérprete virou samba-enredo da Mangueira, escola de coração da entrevistada, que se sagrou campeã do Carnaval de 2016. 

“Não sou, particularmente, uma intérprete extraordinária de sambas, tenho um jeito baiano de fazer, e a Mangueira é carioca. Queria homenagear todas as maneiras, suingues, atrasos e adiantos do samba, e achei que o Letieres poderia ajudar”, conta. “A Mangueira tem uma batida diferente daquela de todas as demais escolas, e para ter o meu Recôncavo da Bahia com o samba de roda, que tem uma ginga única, com toda essa negritude, pensei que o Letieres faria uma boa leitura”, completa a artista, que descreve o trabalho do maestro como “fabuloso e reconhecido no mundo inteiro”. 

O resultado do encontro foi o álbum com músicas dedicadas à Mangueira, previsto para ser lançado no dia 1º de dezembro, que Bethânia define como “um agradecimento”. A satisfação com o tributo fica clara em suas palavras. “Amo esse disco. Não sou de ficar ouvindo um trabalho depois de gravado, é raro. Mas esse me dá muito prazer de lembrar, falar e ouvir com os meus amigos”, confessa.

Com inéditas de Nelson Sargento e Tantinho da Mangueira e clássicos de Paulinho da Viola e Assis Valente, o registro acendeu a fagulha para o próximo passo. “O Letieres foi assistir a um ensaio e disse que poderia fazer a direção. Tive que abrir mão de gostos já estabelecidos, e ele também, fomos muito exigidos por nós mesmos. Tem sido uma experiência enriquecedora, nova e diferente”, avalia. 

Contrastes. “Claros Breus” inverteu outras lógicas da carreira de Bethânia, ao ser levado para o palco antes do estúdio. A estreia da turnê aconteceu em julho, no Manouche, pequena casa de shows carioca com espaço para cerca de cem espectadores e clima de cabaré. “Realizei em um mês um sonho que pretendo realizar para sempre, que é o de sair para trabalhar e voltar para a minha casa”, garante Bethânia, antes de emendar com uma afirmação em jocoso tom de mau humor, escandindo a primeira palavra. “Odeio aeroporto, hotel, casa dos outros, restaurante. Sou careta, interiorana de Santo Amaro da Purificação, e continuo cada vez pior”, diverte-se.

O batismo da turnê teve como ponto de partida “A Flor Encarnada”, inédita de Adriana Calcanhotto. A gaúcha telefonou a Bethânia para falar sobre a canção, ao que a baiana perguntou se “era uma coisa muito viva”. Adriana respondeu: “Pelo contrário”. Bethânia concorda que a música é “de uma desolação total”, o que não a impediu de “ficar completamente apaixonada” e pedir autorização para gravá-la. “O autor tem sempre direito de lançar primeiro”, sustenta. Os versos “eu e meus breus” a fascinaram e se acoplaram ao desejo de “cantar o amor de uma maneira quente e viva”, conta.

“O roteiro tem ironia, amor machucado, desejado, assustado, de todo tipo. Com essa guia do amor afetivo e também patriótico, o amor profundo que sinto em relação ao Brasil e ao povo brasileiro, veio a ideia de claridade, luz e luminosidade do amor, que, ao mesmo tempo, tem os seus momentos de breu. Então a primeira ideia não foi nem ‘claros’, foi ‘Acesos Breus’, mas daria uma dualidade, então pensei em ‘nítidos, luminosos’, até chegar a ‘Claros Breus’”, revela. 

“Luminosidade” é uma das novidades de Chico César que comparecem no repertório. “Essa música é uma das coisas mais bonitas do mundo, uma obra-prima. É o momento oportuno de cantá-la para o Brasil, de parar de incendiar a Amazônia e o Pantanal. São palavras para a nação, tanto que não canto quase nada, canto algumas palavras só, e fica a sonoridade. O Letieres compreendeu da mesma maneira, não precisava ter nada além”, sublinha. 

Também de César, “Águia Nordestina” surgiu do texto escrito por ele para o encarte de “Dentro do Mar Tem Rio”, disco duplo de Bethânia de 2007. O compositor paraibano ainda marca presença com “Da Taça”, na dobradinha com “Evidências” (José Augusto e Paulo Sérgio Valle), hit da dupla Chitãozinho e Xororó. “Gosto dessas brincadeiras. É a mesma jogada de quando juntei ‘É O Amor’ com ‘Do Jeito que Você Me Olha’. Só que ‘Evidências’ é deprimida, tristinha, aí ‘Da Taça’ vem e complementa”, observa.

Já “Sinhá” levou a cantora da tensão ao riso. A música de Chico Buarque e João Bosco a emocionou desde a primeira audição. Finalmente ela resolveu interpretá-la, “praticamente recitando”. “O Chico foi me ver e quase me matou do coração. Adoro cantar na frente dele, mas fiquei nervosa. É uma música especial. O Chico entendeu tudo, depois ele entrou no camarim fazendo a maior anarquia”, confidencia. “História pra Ninar Gente Grande”, samba da Mangueira vencedor do Carnaval de 2019, que cita Marielle Franco e Leci Brandão, é “mais um momento comovente”. “São mulheres de muita força e luta”, conclui Bethânia. 

Serviço. Show “Claros Breus”, de Maria Bethânia, neste sábado (23), às 21h, no Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1.537, centro). Ingressos esgotados. No repertório, estão inéditas de Adriana Calcanhotto, Chico César Roque Ferreira, além de sucessos da intérprete.