São Paulo. Convidada para fazer a curadoria do setor Solo na 15ª edição da SP-Arte neste ano, a chilena Alexia Tala já está confirmada para retornar à equipe de curadores da maior feira de arte da América Latina em 2020. Neste mesmo ano, será realizada a Bienal de Arte Paiz na Guatemala, iniciativa em que Alexia também responde pela curadoria-chefe.
Em 2019, ela selecionou 12 artistas latino-americanos, entre eles o mineiro Randolpho Lamonier, o capixaba Rafael Pagatini, o baiano Ayrson Heráclito e a dupla belo-horizontina Manata Laudares (formada por Franz Manata e Saulo Laudares). A seu ver, em torno das criações desses brasileiros podem ser encontradas reflexões e perspectivas que os aproximam de outros nomes, a exemplo dos peruanos Fernando Bryce, Nicole Franchy e do guatemalteca Luis González de Palma, que também estiveram representados na SP-Arte por galerias estrangeiras.
Em entrevista ao Magazine, Alexia tece comentários sobre os temas que permeiam a arte latino-americana contemporânea e detalha os interesses que guiam as pesquisas norteadoras dos trabalhos realizados por ela no Brasil e na Guatemala.
Houve algum artista que entrou no seu radar mais recentemente em razão desse projeto para a SP-Arte?
Sim, o Rafael Pagatini eu ainda não conhecia e cheguei até ele por meio desta pesquisa. O trabalho dele é muito bom e poderoso. Na SP-Arte, ele expôs uma obra que parte de uma fotografia (de 1976, tirada durante a inauguração da rodovia dos Bandeirantes em São Paulo), destacando alguns personagens da época que se projetam sobre caixas de arquivos feitas em madeira. O interessante é que essas caixas não se fecham, mesmo se você tentar dobrá-las. E isso é muito forte, porque assim é a história. Ela é algo que não fecha. O que aprendemos na escola, muitas vezes, depois, quando chegamos à vida adulta, revela ser uma mentira. Eu fiquei um mês na Guatemala pesquisando umas cartas que falam do homem americano. E as primeiras tratam dele como um ser forte, alto e que vivia até 150 anos. Mas, depois, o ocidental começou a achar que o homem americano estava tendo uma imagem maior que a dele. Então, de repente, o homem americano se tornou mais baixo, menos ágil, preguiçoso, menos inteligente e depois virou um selvagem, peludo, que culmina na imagem do canibal. Ou seja, todas essas mudanças têm sido ficcionalizadas. E esses artistas também estão atentos às visões deturpadas sobre a América Latina.
O modo como questões do passado reverberam no presente, portanto, tem sido algo constante na criação desses artistas?
Sim, até porque o tempo histórico funciona assim, e algo que virou passado, de repente, pode voltar a acontecer. Há um pensador, (Reinhart) Koselleck que observou como o presente, nesse momento em que estamos vivendo, marcado pela rapidez e pela diversidade de imagens e de tecnologia, com milhares de coisas acontecendo ao mesmo tempo, isso torna nublado o passado e ao mesmo tempo não nos permite ver com muita clareza o que se anuncia como futuro. O que estamos fazendo hoje é, de certo modo, buscar construir possíveis futuros, a partir dessas diversas leituras. Já é sabido que a história que prevalece é a dos vencedores. O trabalho de Fernando Bryce, a partir da figura do líder indígena Túpac Amaru, vai na contramão disso. Ele tenta recuperar esse símbolo, inserindo-o de outra forma na história do Peru. O trabalho dele é muito forte e não à toa foi adquirido agora e doado para a coleção do Malba (Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires).
Você pesquisa a arte latino-americana há cerca de duas décadas. O que os artistas produzem hoje revelam mais continuidade ou apontam novas tendências em relação ao que fizeram os de gerações anteriores?
Eu acho que nos últimos anos tem tido uma tendência marcada de trabalhos centrado nos arquivos. Esse é um assunto que entrou na arte já há alguns anos e sido abordado agora de algumas formas mais frescas a partir das propostas desses artistas. Nicole Franchy (Peru) e Rafael Pagatini são exemplos. Os dois têm uma relação com o acervo de imagens históricas. E uma coisa que tenho observado é que vários artistas do Sul Global estão trabalhando muito com textos. Em fevereiro, eu participei de uma conferência na Tate Modern (em Londres), e ficou nítido para mim como aspectos de países da África, da Ásia encontram semelhanças com o que identificamos aqui. Essa percepção foi tão inspiradora que mudou um pouco o projeto que estava desenvolvendo para a bienal da Guatemala e está me levando a pensar no que vou fazer no ano que vem na SP-Arte.
Por que a questão dos arquivos tem aparecido com tanta força nas artes visuais, a seu ver?
Eu acho que isso se relaciona principalmente ao fato de termos vivido uma grande mentira por tantos anos e séculos, desde o início. Afinal, quem somos nós? Olha as ditaduras na América Latina. O que elas foram? Já houve artistas que me apresentaram documentos antes desprezados e que são incríveis, mostram como o que aprendemos na escola era tudo falso. Temos arquivos que nos mostram o que foi ocultado pela história, e acho que por isso tratar com esse tema tem sido algo importante de se fazer hoje.
Viés mais local veio para ficar
Idealizadora da SP-Arte, Fernanda Feitosa considera que o foco nas relações entre o Brasil e os outros países da América Latina deverá permanecer de agora em diante, fortalecendo recortes curatoriais centrados nessa perspectiva. O que, para ela, é algo não só necessário como bastante potente.
“Nós queremos trazer um pouco mais dessa ponte aqui para o evento”, sublinha Fernanda. “Às vezes, nós falamos que os Estados Unidos não olham para nenhum outro lugar a não ser para eles mesmos, mas o Brasil, no contexto da América Latina, não age de maneira muito diferente. Acho que há vários fatores ligados a isso. Somos um país de dimensão continental, com várias questões. Há ainda a diferença da língua, que pode contribui para que olhemos menos para os nossos vizinhos. Mas não há o que discutir, o Brasil pertence à América Latina e fomentar essas relações tem tudo a ver”, conclui ela.
O repórter viajou a convite do evento