Em alguns trechos de “Grande Sertão: Veredas”, a viola é o único instrumento musical a figurar repetidas vezes na narrativa. O personagem principal, Riobaldo, fala do instrumento, e é perceptível que ele conhecia as famosas violas de Queluz (hoje, Conselheiro Lafaiete), município mineiro que chegou a ter 15 fábricas do instrumento. “Só um bom tocador de viola é que podia remir a vivez de tudo aquilo” e “sossego traz desejos. Eu não lerdeava; mas queria festa simples, achar um arraial bom, em feira-de-gado. Queria ouvir uma bela viola de Queluz, e o sapateado dos pés dançando” são alguns trechos da obra-prima de Guimarães Rosa.

Desde a colonização, diversas citações na literatura brasileira testemunham ser a viola, se não o mais popular, certamente um dos mais importantes instrumentos do país. Presente de Norte a Sul no Brasil, a viola possui diferentes formatos e “sotaques”. A mais difundida, a caipira, reúne o maior número de tocadores, principalmente em Estados como São Paulo, Paraná, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e, claro, Minas Gerais. “A viola tem a importância de ter sido o primeiro instrumento de acompanhamento de canto a chegar ao país, testemunhando de perto nossa história até os dias atuais. Sua ligação com nossas raízes, portanto, é a base de tudo o que é desenvolvido musicalmente até hoje tratando-se de música brasileira. O samba, como conhecemos, por exemplo, advém dos lundus, que eram tocados em viola”, explica o músico, produtor e gestor cultural mineiro João Araújo, que já declarou que “a viola deveria estar para Minas assim como a Bossa Nova está para o Rio de Janeiro”.

Felizmente violeiros e pesquisadores estão chamando atenção para a relevância dele para a cultura brasileira. Recentemente, um projeto encaminhado pelo próprio Araújo junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) busca o reconhecimento da viola caipira como patrimônio imaterial brasileiro.

Centros urbanos. Introduzida no país pelos portugueses, a viola se modificou em solo nacional e, de acordo com Roberto Corrêa, músico e pesquisador, ela, até o final do século XVIII, foi o principal instrumento de acompanhamento do Brasil. “Naquele momento, ela era encontrada tanto no campo quanto nas cidades. Ainda não existia aqui o violão, e o instrumento de acompanhamento por excelência no país era a viola. Com a chegada do violão, ela desapareceu das cidades, permanecendo no meio rural”, diz Corrêa.

A partir de 1960, no entanto, ele identifica uma retomada da viola nos centros urbanos. O que, de acordo com Corrêa, foi alavancado pela atuação de violeiros como Julião e Tião Carreiro. Outro fator que contribuiu para isso foi a repercussão da música “Disparada”, de Geraldo Vandré e Théo Barros, que dividiu o primeiro lugar do Festival de Música Popular Brasileira, em 1966, com “A Banda”, de Chico Buarque de Holanda, além da criação da primeira orquestra de violeiros em Osasco (SP), em 1967.

“Na década de 1960 foi gravado o primeiro disco de música instrumental de viola por Julião, que tinha o apelido de Rei da Viola. No mesmo período, Tião Carreiro compôs ‘Pagode em Brasília’, criando um ritmo novo e sincopado na música caipira, que ele batizou de pagode. Essa batida virou uma febre. Começaram a surgir também as primeiras composições de música erudita para viola. Uma figura importante nesse momento foi Theodoro Nogueira”, explica o pesquisador.

“Outro acontecimento importante foi o fato de ‘Disparada’ ter ganhado o festival, porque ela trazia a viola na sua composição e isso foi muito celebrado pelas duplas caipiras. A partir daí, as pessoas começaram a dizer que a viola havia voltado para a cidade”, completa Corrêa.


Unesco

Próximo passo é fazer da viola patrimônio mundial

Antes de comunicar ao Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan) o interesse de transformar a viola caipira em bem imaterial, João Araújo pesquisou durante três anos. “Agora que o pedido foi feito serão realizados estudos e consultas com antropólogos e historiadores que vão analisar minha requisição”, afirma.

Araújo lidera uma campanha nacional ao contactar violeiros de várias regiões. Ele também antecipa que seus objetos não se limitarão às fronteiras nacionais e que está acionando também músicos do exterior. “Além de contar com o apoio de vários violeiros do Brasil, estou convidando outros de Portugal para se juntar à gente e, assim, conseguirmos levar essa proposta depois à Unesco, tornando esse instrumento, em seguida, patrimônio da humanidade”.

Renato Andrade. Também violeiro e pesquisador, Paulo Freire ressalta a influência da obra do compositor mineiro Renato Andrade na evolução técnica do instrumento e na entrada dele, até então conhecido por acompanhar duplas caipiras, nas salas de concerto do Brasil e do exterior. “Na década de 1970, Renato gravou um disco instrumental que deixou César Guerra-Peixe (compositor de música erudita) impressionado e interessado em saber de onde vinha o instrumento com aquela sonoridade”. Ele lembra que Andrade questionava o preconceito dos músicos com a viola. “Ele dizia: ‘viola é que nem mortadela. Todo mundo come, mas tem vergonha de comer na frente dos outros’. Ou seja, todo mundo gostava de viola, mas na hora de falar dela em público, os músicos ficavam com o pé atrás”.

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Preservação

Inventário das violas mineiras em processo

Além da iniciativa proposta por João Araújo, que busca o reconhecimento da viola caipira como patrimônio imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), outra ação tem sido realizada, paralelamente, a nível estadual. Está à frente disso, o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG), que, neste ano, está começando a elaborar um inventário dos modos de fazer e das formas de tocar a viola em território mineiro.

Françoise Jean de Oliveira Souza, diretora de proteção e memória do Iepha-MG, afirma que este projeto visa proteger os ofícios e a arte de interpretar a viola, tornando os dois patrimônios imateriais de Minas Gerais. “Em 2015, a secretaria Estadual de Cultura recebeu a Associação Nacional de Violeiros do Brasil que sugeriu a realização desse estudo. Nós o incorporamos em nosso planejamento e após finalizarmos o trabalho com as folias de Minas, que adquiriram esse mesmo reconhecimento agora, nós estamos nos dedicando à viola”, acrescenta Souza.

De acordo com ela, a ideia é, até o próximo mês, tornar pública uma plataforma no site do Iepha-MG que vai permitir o cadastro de luthiers especializados na confecção do instrumento e dos diversos mestres da viola.

“Para que esse projeto tenha sucesso é preciso contar com ajuda dos municípios. Nós estamos falando de um Estado enorme, que tem uma diversidade cultural imensa. Então, nossa intenção é mapear as formas de tocar a viola e as diversas maneiras de produzi-la também”, afirma a gestora, que ressalta o lugar fundamental da viola entre as manifestações da cultura popular.

“A gente percebe que ela perpassa diversas festas populares, como as folias de reis, o congado e a marujada. Ela é o grande elo que liga essas várias manifestações culturais, tendo um papel estruturante em nossa cultura e em nossas diversas formas de nos expressar. Por isso, ao salvaguardar a viola, e nossas formas de fazê-la e tocá-la por extensão, nós também estamos salvaguardando todas essas outras ramificações culturais que estão associadas a ela”, conclui Souza. 


Repercussão

Uma trajetória de resistência

FOTO: Rui Mendes/divulgação
Chico Lobo
Valores. Para Chico Lobo, viola é sinônimo de coletividade

Enquanto a viola deixou os centros urbanos, a partir do século XIX, a viola caipira permaneceu profundamente conectada às manifestações culturais do campo, onde também se estabeleceu como um emblema de resistência. Para o violeiro Chico Lobo, o gesto de torná-la patrimônio imaterial brasileiro pode honrar essa trajetória e ressaltar valores que ele considera pertinentes aos dias atuais.

“A viola em si traz sentimentos que são mais do que necessários diante do que estamos vivendo hoje. São sentimentos de coletividade, de amor, de fé e de amizade. Ela recupera essa ideia de ‘cumpadricidade’. Essa é uma palavra que eu uso pra falar dessas relações de cumadre, cumpadre, em que as pessoas se reúnem para celebrar ou para ajudar uns aos outros”, afirma Lobo.

Bilora, também violeiro, celebra a iniciativa e frisa como ela pode contribuir para reforçar a representatividade da viola. “A sonoridade dela remete ao universo rural, do homem simples, com suas histórias e seu modo de cantar. Traz também consigo essa cultura da folia, e acho que também a de uma resistência à expulsão desse homem do campo para a cidade. A viola está aí também para contar todas essas narrativas”, sublinha ele.

Wilson Dias, por sua vez, frisa que o reconhecimento da viola caipira como patrimônio imaterial pode ajudar na valorização de muitos mestres responsáveis por manter essa tradição de pé. “Esse reconhecimento pode abrir um mundo de possibilidades, e eu acredito que ele pode facilitar muita coisa e favorecer o processo de expansão desse instrumento. Acredito que isso deve ser pensado na perspectiva de se desenvolver políticas públicas voltadas à preservação do instrumento e à valorização de seus mestres, que sem dúvida foram as figuras que impediram que esse instrumento desaparecesse”, declara Dias.

O músico Joaci Ornelas observa que, embora a viola tenha se diversificado, para além de sua presença no ambiente rural, ela mantém um lastro histórico a ser preservado e recordado ao longo do tempo. “O músico que quiser trazer uma outra linguagem para o universo da viola, por mais que ele se distancie daquelas referências, lidará com elas porque são fortes e permanecem na trajetória do instrumento, que é algo bem próprio do Brasil, não há algo igual fora daqui”, diz Ornelas.

Pedro Alexandrino, luthier e idealizador da Orquestra de Viola Caipira de Jovens Luthiers, formada em Barão de Cocais (MG), considera a elevação da viola caipira como patrimônio, algo capaz de esclarecer o papel formativo ligado a ela. “A viola é uma desenvolvedora de cultura. Então, isso é algo extremamente importante. É louvável a atitude de João Araújo em buscar esse reconhecimento. Esse é um dos instrumentos que mais representa o Brasil e vem crescendo muito nos últimos anos. A sonoridade da viola é algo autêntico, que nos remete a nossa raiz, e, ao torná-la patrimônio, podemos valorizar isso e sempre lembrar as novas gerações de onde nós viemos”, conclui Alexandrino.